Salvador, cidade global | Por Juarez Duarte Bomfim

Vista aérea de Salvador.
Vista aérea de Salvador.

No topo de uma possível hierarquia de cidades pode-se encontrar um pequeno número de densas regiões urbanas a que pode-se chamar de cidades globais. Fortemente ligadas entre si, por meios decisórios e finanças, elas constituem um sistema mundial de controle da produção e da expansão do mercado. Segundo Octavio Ianni, essas cidades mundiais rapidamente reestruturam as suas funções de controle global, bem como a divisão do trabalho espacial interno, para responder à presente reestruturação da economia mundial.

A cidade global que se torna realidade nesse início do século XXI é a que se produz como condição e resultado da globalização do capitalismo. É um processo histórico de amplas proporções que já se desenvolvia irregularmente com o mercantilismo, colonialismo e imperialismo e que alcança magnitude e generalidade excepcionais na contemporaneidade.

Nessas grandes cidades, de periferias e zonas suburbanas espraiadas, a complexidade social e econômica, os elementos extraterritoriais e o multiculturalismo, fazem muito difícil reconhecer significados através da estrutura físico-visual do espaço urbano. Ao percorrer qualquer metrópole de hoje, tem-se a impressão de estar em várias cidades ao mesmo tempo: a cidade dos imigrantes, a dos migrantes internos, a cidade dos negócios, a cidade da antiga atividade industrial, a cidade histórica… Todavia, não são distintas, há uma dinâmica que as une e que encontra muitas explicações na organização espacial da economia.

Na era da globalização, além de constituir-se no lugar privilegiado para a produção de mercadorias, a cidade global torna-se, em si, também uma mercadoria especial. Neste início de século, essas grandes urbes compõem ambientes construídos, com características físicas e densidades históricas diferenciadas, acumulando valores simbólicos e culturais que passam a ser consumidos como mercadorias virtuais.

Essas condições representam elementos importantes na competição atual entre as cidades, movimento presente no intenso processo de globalização da acumulação capitalista e manifestam-se interferindo na escolha de localizações preferenciais para atividades e sedes produtivas, relacionadas a vantagens econômicas e ao maior consumo dos lugares. Dessa maneira, algumas cidades entram nos circuitos mundiais com mais potencialidades que outras e com diferentes vocações e intensidades.

Exemplos de cidades globais são metrópoles como Tóquio, Los Angeles, São Francisco, Miami, Nova York, Londres, Paris, Randstadt, Frankfurt, Zurique, Cairo, Bangcoc, Cingapura, Hong Kong, Cidade do México e São Paulo.

Parecendo falar de São Paulo, Octavio Ianni afirma: “a cidade global adquire características de muitos lugares. As marcas de outros povos, diferentes culturas, distintos modos de ser podem concentrar-se e conviver no mesmo lugar, como síntese de todo o mundo. A cidade pode ser um caleidoscópio de padrões e valores culturais, línguas e dialetos, religiões e seitas, modos de vestir e alimentar, etnias e raças, problemas e dilemas, ideologias e utopias. Algumas sintetizam todo o mundo, diferentes características da sociedade global, tornando-se principalmente cosmópoles, antes do que cidades nacionais”.

É na cidade global que a questão social adquire todas as características de uma questão simultaneamente urbana. Na grande cidade estão bastante presentes os negócios do narcotráfico e da violência, bem como as manifestações de xenofobia, etnocentrismo e racismo, além das carências de recursos habitacionais, de saúde, educação e outros; e estes já são problemas simultaneamente sociais e urbanos. Envolvem a organização, o desenho e a dinâmica da cidade, implicando arquitetura, urbanismo e planejamento, e revelam-se de modo especialmente acentuado nas grandes cidades, metrópoles, megalópoles. Mas além desses problemas, desenvolvem-se outros, tornando a questão urbana ainda mais complexa.

Os futurologistas diziam que os efeitos da tecnologia da informação sobre a cidade seria de dissolver os espaços, faria por desaparecer as cidades, pois, como o desenvolvimento da comunicação eletrônica e dos sistemas de informação propiciam uma crescente dissociação entre a proximidade espacial e o desempenho das funções rotineiras – trabalho, compras, entretenimento, assistência à saúde, educação, serviços públicos, governo – a conseqüência seria “o fim da cidade, ou pelo menos das cidades como as conhecemos agora, visto que estão destituídas de sua necessidade funcional”, segundo Manuel Castells.

Todavia ocorreu justamente o contrário, pois desde os anos 1980 se produz um “renascimento” das cidades, tanto na Europa como na América, com a revitalização de bairros históricos, reabilitação de zonas degradadas, a reciclagem e dotação de equipamentos culturais para torná-las mais rentáveis e a restauração de edifícios emblemáticos. Contudo, a interação entre a nova tecnologia da informação e os processos atuais de transformação social realmente têm um grande impacto nas cidades e no espaço.

Castells afirma que o teletrabalho dos trabalhadores à distância “representa a ultima esperança dos planejadores de transportes metropolitanos antes de se renderem à inevitabilidade de megacongestionamentos”. Porém, a quantidade de trabalhadores à distância com empregos regulares para operar on-line em casa, é muito pequena no conjunto e provavelmente não terá grande crescimento em um futuro previsível. Pois as casas não se tornariam locais de trabalho, mas a atividade de trabalho poderia espalhar-se consideravelmente pela área metropolitana, intensificando a descentralização urbana.

E como essas tendências afetam as cidades? Parece que os problemas de transporte, em vez de melhorar, piorarão porque o aumento das atividades e a compressão temporal possibilitados pela nova organização em rede transformam-se em maior concentração de mercados em certas áreas e em maior mobilidade física de uma força de trabalho antes confinada a seus locais de trabalho durante o expediente. Dados indicam que o tempo de deslocamento em razão do trabalho mantém-se em um nível constante nas áreas metropolitanas dos Estados Unidos, não devido à melhora da tecnologia, mas por causa de um modelo mais descentralizado de localização de empregos e residências que permite o fluxo de tráfego mais fácil entre os subúrbios.

Nas cidades européias onde o modelo radioconcêntrico ainda predomina nos deslocamentos diários – como Paris, Madri ou Milão – o tempo de deslocamento “para ida ao trabalho e a volta à casa é enorme, em especial para os ferrenhos adeptos do automóvel” (Castells). Nas novas e sempre crescentes metrópoles asiáticas, sua entrada na era da informação é paralela ao surgimento dos piores congestionamentos da história, de Bangkok a Xangai. E São Paulo segue congestionada.

Apesar da propalada desterritorialização na era do globalismo, as grandes metrópoles se tornam cada vez mais atraentes enquanto negócios, ocorrendo uma estreita relação entre mercado financeiro e mercado imobiliário, acarretando novas configurações urbanas. Essa dupla relação se manifesta de forma multifacetada: enquanto os mercados financeiros se tornam cada vez mais imaterializados, “desincorporados” em novos “produtos” especulativos ou virtuais, os níveis de concentração nas cidades são mais elevados e o solo urbano é sobrevalorizado, por abrigar serviços cada vez mais sofisticados ligados a esse capital financeiro, ou como sedes das empresas transnacionais, como é o caso das cidades globais. Essa relação contraditória se explica pelo paradoxo de que quanto mais desterritorializadas as atividades no sentido de dispersão geográfica, maior a necessidade de controle e são as grandes cidades que podem desempenhar essa função.

Nesse sentido, a produção de grandes e sofisticados equipamentos urbanos (arranha-céus, shoppings etc) deve ser vista como resultante de cálculos de obter rentabilidade máxima. A cidade global tem de ser vista como ambiente comercial complexo, onde construir é um negócio que extrai lucro, ao mesmo tempo, da produção de espaço, da localização, da imagem e do status.

Nas grandes cidades dos países centrais, o modelo de “conjuntos habitacionais” mesmo bastante difundido, não eliminou as habitações de populações pobres localizadas nos centros urbanos, constituída tanto por moradores que lá se mantiveram como pelos novos imigrantes. Nos anos 1980, com o desenvolvimento de projetos de intervenção pública para renovação urbana, manifesta-se outro tipo de mudança na localização habitacional ligada as classes sociais, denominado gentrificação, isto é, expulsão das populações pobres residentes em áreas centrais degradadas, substituídas por outras de renda mais alta.

Essas intervenções que se perpetram nas grandes cidades, basicamente têm sido relacionadas à ampliação dos setores financeiro e turístico, associadas à dinamização de atividades imobiliárias. Geralmente incidindo em áreas decadentes de propriedade pública ou semi-pública, esses projetos de urbanização têm como objetivo integrar atividades de recreação, cultura, compras e habitação para moradores de renda mais alta. Esse novo modelo – de cidade-espetáculo, ou cidade-como-palco – se reproduz em cidades antigas, de vocação turística, envolvendo grandes investimentos públicos e privados, quase sempre expulsando as famílias pobres residentes, de forma direta ou, indiretamente, pelos altos custos de morar nessas áreas “revitalizadas”.

Alguns destes espaços são frutos de lógicas puramente mercantis – como os espaços e superfícies comerciais – e outros obedecem a uma lógica combinada de cultura e mercado, como os espaços especializados de produção e consumo culturais. Todos eles, apesar de sua lógica de significação própria, material ou simbólica, encontram-se em vias de serem açambarcados pelos princípios ordenadores de consumo, mesmo os espaços monumentais e históricos das cidades.

Salvador (Bahia), como cidade global intermediária, não foge a esta regra, pois desde finais dos anos 1980 vem sendo tratada como um produto de marketing e exportação, exercendo um papel estratégico na circulação do capital. O fomento ao turismo, a infra-estrutura de serviços direcionada para atrair grandes corporações para a Região Metropolitana de Salvador, são indicadores dos efeitos concretos do processo de globalização na cidade.

A imagem que se busca vender de Salvador é de publicitariamente se dar destaque a elementos reconhecidamente atrativos nos atuais pólos de turismo de massa: “paisagens inebriantes, exotismo, historicidade, cultura local soberba”, conforme a arquiteta Ana Fernandes. Segue-se a lógica de fazer convergir turismo e cultura, o que em si não é uma tendência negativa, muito pelo contrário. Todavia, no caso em questão, quando o que se privilegia é “o olhar do outro, o olhar de fora, o olhar insaciável em busca de identidades, particularidades, exotismos” (Ana Fernandes), o que se assiste é o atendimento à demanda por circuitos econômicos de promoção que, ao exigir o caráter de uma certa identidade como condição para integrar o seu domínio, torna pitoresca a herança cultural existente. Isto acaba por transformar a cidade em uma caricatura de si mesmo.

É importante reconhecer que a cidade de Salvador possui, alta densidade de tradições culturais e natureza privilegiada. Porém, a crítica cultural contemporânea demonstra que a minimização de amplos fenômenos sociais, históricos e culturais a simples atrativos turísticos é prejudicial para as possibilidades de desenvolvimento local em termos culturais, sociais e econômicos, ao invés de se apontar para a construção de uma cidade plena de vigor em sua tradição e contemporaneidade.

Para consolidar a estratégia de fazer Salvador uma cidade atrativa para os investimentos das empresas globais, o maior fluxo de recursos concentrou-se nos últimos anos em obras de embelezamento das áreas do circuito turístico consolidado ou potencial, e de dotação de infra-estrutura nos novos espaços de interesse econômico. Enquanto isso, nos bairros populares as condições de vida permanecem precárias, e refletem as desigualdades sócio-espaciais quanto às oportunidades de emprego e renda, habitação, transporte, infra-estrutura urbana etc., intensificando o processo de desagregação espacial que, gradativamente, desloca a população de baixa renda, excluída do mercado formal de terras e habitação, para as áreas de precárias condições de habitabilidade, caracterizadas pela deficiência dos serviços públicos básicos.

Dessa maneira, paralelamente ao boom publicitário de Salvador, vista como um produto de consumo e buscando ser competitiva no mundo globalizado, se constrói uma cidade que combina altas taxas de crescimento demográfico, acirrada desigualdade social, desequilíbrio espacial de padrões de urbanização e ocupação do solo, degradação física dos espaços públicos, deficiência na oferta de serviços urbanos e altos índices de pobreza urbana.

Este é o desafio a ser enfrentado pelo Poder Público e – num Estado democrático de direito – principalmente pela sociedade civil organizada.

*Juarez Duarte Bomfim, sociólogo e mestre em Administração pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), doutor em Geografia Humana pela Universidade de Salamanca, Espanha; e professor da Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS).

Vista aérea de Salvador.
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Baiano de Salvador, Juarez Duarte Bomfim é sociólogo e mestre em Administração pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), doutor em Geografia Humana pela Universidade de Salamanca, Espanha; e professor da Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS). Tem trabalhos publicados no campo da Sociologia, Ciência Política, Teoria das Organizações e Geografia Humana. Diversas outras publicações também sobre religiosidade e espiritualidade. Suas aventuras poético-literárias são divulgadas no Blog abrigado no Jornal Grande Bahia. E-mail para contato: juarezbomfim@uol.com.br.

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