Existem momentos singulares, únicos, que as pessoas celebram durante a vida e que são marcados pela simplicidade da partilha do alimento à mesa ao lado de quem amam.
9 de outubro de 2011, era a noite de domingo, quando Carlos Augusto, acompanhado da amada mãe, Lucy Oliveira da Silva (†1947 — ★2013); da filha, Carla Patricia; do irmão dela, Otto Lacerda-Ullman e do pai dele, Peter Ullmann (†1946 — ★2019) foram convidados a jantar por Felice Russotto no restaurante Cortina, local que ele dirigia há décadas e onde preparava maravilhosos pratos da culinária italiana e internacional.
Felice Russotto era natural da Itália e o restaurante Cortina transmite um ambiente de aconchego e familiaridade na aprazível cidade de Kaufbeuren, região administrativa da Suábia, estado da Baviera.
Kaufbeuren é reconhecida como a cidade mais ensolarada da Alemanha, cuja arquitetura remete à própria identidade do povo germânico.
- Em 1286, recebeu o título de ‘Cidade Imperial Livre’ do rei Rodolfo I da Germânia (Rodolfo IV de Habsburgo);
- Em 1327, direitos de cidade, concedido pelo rei Ludwig IV;
- Em 1802, perdeu o status de ‘Cidade Imperial Livre’; e
- Em 1948, Kaufbeuren voltou a ser independente de um distrito.
Em visita ao museu Iseberg de Kaufbeuren é possível conhecer parte da história do local e da região da Baviera.
É nesta cidade — repleta de passado e que educa pessoas para o futuro — que Felice Russotto se tornou um dos mais celebrados membros da comunidade. Porque o restaurante que dirigia era sede de encontros dos mais diversos, que aliados a comida e bebida de excelência que preparava e servia transformava qualquer episódio em um grande momento da vida.
A denominação do restaurante ‘Cortina’ remete a vários significados, dentre eles representa o ‘tripé em forma de caldeira’, de onde se acreditava que o deus Apolo emanava respostas. Significa, também, o ‘véu sagrado’ nos templos pagãos atrás do qual o oráculo dava respostas. Em síntese, a magia ancestral mítica estava presente na alquimia do lugar e na gastronomia de excelência.
A gentileza de um autêntico italiano
Retornando à noite de domingo, 9 de outubro de 2011, Felice Russotto — com a gentileza de um autêntico italiano e a precisão de um alemão — preparou e serviu massas, filés, camarões e lagostas, acompanhado de pão italiano e do famoso vinho Chianti, da Toscana, cuja composição é feita com 80% de uvas Sangiovese Cabernet, combinada com uma mistura equilibrada de 20% de uvas Sauvignon e Cabernet Franc, um verdadeiro néctar divino.
Foi uma noite memorável, inesquecível, repleta de sorrisos e celebração. Em minha mente lembrei do meu pai, José Augusto (Jads, †1943 — ★2018), e dos irmãos José Augusto Junior e Luís Cláudio. Senti as presenças deles e desejei que estivessem ao meu lado. Na sequência, veio à mente que saber celebrar a vida não é ficar triste com o que falta, mas contente com o que se tem.
Com as taças de vinho, passei a noite dialogando e conheci amigos de longa data de Felice Russotto.
Ao final da celebração, ele me presenteou com duas garrafas de vinho italiano. Alguns dias depois devolvi a gentileza com uma foto emoldurada, em preto e branco, que tinha registrado e na qual mostrava a geometria e simetria dos telhados dos imóveis de Kaufbeuren, com destaque para a parte superior da igreja gótica tardia de São Blasius.
Anos depois, em 12 de abril de 2017, iria abrir a primeira garrafa de vinho para comemorar o namoro de Carla Patricia com Johannes Fittler, quando ambos me visitaram no Brasil.
A segunda garrafa ainda guardo comigo, um vinho tinto Sasseto da safra de 2005, oriundo da região produtora de Brunello di Montalcino. Reservo para o dia em que receber a visita do meu neto Luca Silva Fittler.
Despedida eterna, mas não permanente
Felice Russotto nasceu em 13 de março de 1960, em Licata, Itália e faleceu no sábado, 22 de janeiro de 2022, na própria residência, em Kaufbeuren.
Deitou-se para dormir e não mais acordou para esta dimensão. Um infarto fulminante cessou o pulsar da vida material do gentil amigo que, por um tempo, foi como um pai para Carla Patricia, por ter sido namorado de Patricia Lacerda, com que nutriu uma relação de chefe, namorado e de amizade, ao longo de 25 anos de convivência.
Ele deixa a filha Sabrina Fuchs e o filho Matteo Fuchs.
Poesia para aplacar a dor
Nos versos da poesia musical de ‘Metade’, redigida e cantada por Oswaldo Montenegro, um alento em meio a dor da despedida:
- Que a força do medo que tenho
- não me impeça de ver o que anseio
- que a morte de tudo em que acredito
- não me tape os ouvidos e a boca
- pois metade de mim é o que eu grito
- a outra metade é silêncio
- Que as palavras que falo
- não sejam ouvidas como prece nem repetidas com fervor
- apenas respeitadas como a única coisa
- que resta a um homem inundado de sentimentos
- pois metade de mim é o que ouço
- a outra metade é o que calo
- Que a minha loucura seja perdoada
- pois metade de mim é amor
- e a outra metade também
- Que não seja preciso mais do que uma simples alegria pra me fazer aquietar o espírito
- Que o seu silêncio me fale cada vez mais, pois metade de mim é abrigo, enquanto a outra metade é cansaço
- Que o medo da solidão se afaste
- Pois metade de mim é a lembrança do que fui, a outra metade não sei
- Que a minha vontade de ir embora se transforme na calma e paz que mereço.
Até breve, gentil Felice Russotto (†1960 — ★2022).