A micro-história da Covid-19: Isolamento, solidão, o medo da morte e mais um número na estatística | Por Ângelo Augusto Araújo

Paciente com a Covid-19 é transportado para unidade de saúde especializada. Nos casos mais graves da doença, sofrimento é angustiante.
Paciente com a Covid-19 é transportado para unidade de saúde especializada. Nos casos mais graves da doença, sofrimento é angustiante.

Atualmente, o mundo acumula aproximadamente 104 milhões de infectados e 2.27 milhões de mortos, o aparecimento das novas variantes multiplicam pelo planeta, o descontrole e o medo do contágio crescem assustadoramente[1]. No Brasil, nos últimos dias, a cada 24h morrem em média mais de 1000 pessoas pela Covid-19[2], o sentimento da perda de cada indivíduo é refletido na dor e no desespero dos familiares e amigos que ficaram, assim como, para alguns nem sequer teve a oportunidade de prover cuidados e se despedir dos entes queridos. A contaminação pelo Sars-Cov-2 está deixando cicatrizes, as quais vêm se multiplicando e transformando em um legado global catastrófico para história humana. No presente dia, existem diversas feridas abertas, pessoas contaminadas, em isolamento domiciliar, e ou hospitalizadas, que independentemente do desfecho tomado formará o corpo do desastre psicossocial e econômico, Sindemia[3], que o tempo carregará junto com a história. A história que será contada e refletida, mostrará quem estava a frente na condução da pandemia, quais foram os motivos dessa grande catástrofe humana e como poderia ter sido evitada. Todavia, destaca-se aqui a micro-história, a história do indivíduo infectado.

Desde que a pandemia se iniciou em Wuhan – China[4], os números de contaminados e mortos não param de crescer em uma projeção linear. Todos os dias, são feitos diagnósticos de contaminação viral de pessoas diferentes, dentro os quais estão os indivíduos que ao menos pensou na possibilidade de infecção, assim como, aqueles que vinham adotando todas as medidas de proteção, mas, infelizmente, foi exposto ao contato com o vírus. Grande parte dos relatos das pessoas contaminadas estão vinculados ao sentimento de está em uma “roleta russa”, que não se sabe qual será o desfecho: “a sensação, mesmo em isolamento domiciliar, é de está olhando para sua família e, talvez, nunca mais poder abraçá-la. O sentimento é de completa vulnerabilidade, o que leva ao encorajamento de usar qualquer coisa. É como se seu fim estivesse muito próximo, e tudo que se planejou e programou para o futuro, não passe apenas de um sonho que será esquecido”. Nos momentos de agravamento e necessidade de internação, os relatos apontam que: “a dor e o desespero causado pela falta de ar”, aumentam o estado de vulnerabilidade, os quais comentam que: “quem indicar qualquer ajuda mínima para sair daquele estado de torpor, de pensamentos confusos, medo aguçado, com a sensação de estar morrendo afogado, aceita-se qualquer coisa”. Durante esses momentos de angústia, os relatos que se somam, traz que o único desejo é estar vivo: “Não importará mais nada, tudo fica, quero apenas a minha saúde de volta”. Essa micro-história contada, vem se somando a cada dia, as pessoas que tiveram a chance de escapar dos estados graves da doença, e conseguiram relatar tais experiências, apontam que: “Parece ter recebido uma nova oportunidade de viver”. Alguns mais bem afortunados, os quais nem mesmo foram sintomáticos, descrevem distúrbios psíquicos como depressão e fobia social (vale destacar que o excesso de confiança e euforismo pode ser um sintoma psicopatológico)[5]; alguns começam a relatar outras alterações patológicas tempos após ter sido contaminados; assim como, somam ao número de pessoas com o medo de reinfecção por novas variantes virais.

A micro-história dessa pandemia é composta por inúmeros relatos e experiências que, caso fosse contado, infelizmente, esse artigo não se terminaria. Escrever-se-ia inúmeras páginas de sofrimento humano, como os relatos: as faltas de vagas nos hospitais, UTIs[6]; falta de oxigênio[7]; mortes em domicílio[8]; corpos encontrados em rodovias[9]; depressão[10]; suicídio[11]; profissionais de saúde que perderam a vida nos campos de batalha[12]; famílias que ficaram órfãs[13]; pais que sofrem pela perda de filhos[14]; pessoas que estão em tratamento sindrômico pós infeccioso[15]… tal qual, o medo da reinfecção e como será a próxima batalha. A micro-história de cada indivíduo, desde que a pandemia começou, foi deveras ignorada[16] por frases jocosas, irônicas como: “gripezinha”; “tem que deixar de ser marica”; “todos nós iremos morrer um dia”; da mesma maneira que, os exemplos de enfrentamento da pandemia ocorreram de forma inversa ao que recomenda o mundo científico: excitação de aglomerações; aparecimento público sem máscaras; indicações de terapias não convencionais; etc[17].

Conclui-se que, a micro-história faz parte das estatísticas globais, contadas por cada indivíduo e cada família que estão sofrendo as consequências desse desastre humano. Ao aparecerem no final do dia apenas como números, escondem-se o sofrimento e o desrespeito com cada pessoa e sua história. Esses números são compostos pelos sonhos e esperanças desfeitos, famílias sofrendo com a dor da ausência de cada indivíduo na luta pela recuperação ou perdido para a Covid-19, aos quais, infelizmente, nem sequer fizeram parte desse curto relato memorial desastroso, todavia, estão somados aos números totais de contaminados e mortos. A micro-história será contada: Pelos afortunados que escaparam das consequências graves da doença; pelas pessoas que estão sequeladas e ou perderam seus familiares; e pelos que ressentiram que a pandemia poderia ter tomado um rumo diferente. Portanto, a dor, as recordações desse período tenebroso, permitirá, sem dúvidas, as construções dos fatos que se somarão a uma grande cicatriz temporal humana, a qual revelará os motivos das excentricidades, das atitudes individualistas e desumana de alguns.

*Ângelo Augusto Araújo (angeloaugusto@me.com), médico, pesquisador, doutor em saúde pública e doutorando em Bioética pela Universidade do Porto.


Referências

[1] Disponível em: https://www.worldometers.info/coronavirus/, acessado em: 04/02/2021.

[2] Disponível em: https://br.financas.yahoo.com/noticias/pelo-11-dia-seguido-brasil-230700299.html, acessado em: 04/02/2021.

[3] Disponível em: https://cee.fiocruz.br/?q=node/1264, acessado em: 04/02/2021.

[4] Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/internacional/noticia/2021-01/covid-19-equipe-da-oms-visita-hospital-de-wuhan-na-china, acessado em: 04/02/2021.

[5] Disponível em: https://www.medicina.ufmg.br/dor-depressao-e-ansiedade-podem-estar-entre-as-sequelas-da-covid-19/, acessado em: 04/02/2021.

[6] Disponível em: https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2020/12/07/sem-leitos-de-uti-para-covid-na-rede-publica-dobra-na-justica-o-numero-de-pedidos-por-vagas-em-hospitais-do-rj.ghtml, acessado em: 04/02/2021.

[7] Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/saude/noticia/2021-01/mp-vai-investigar-mortes-por-falta-de-oxigenio-no-amazonas, acessado em: 04/02/2021.

[8] Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2020/07/mortes-em-casa-cresceram-53-durante-pandemia-em-quatro-capitais-brasileiras.shtml, acessado em: 04/02/2021.

[9] Disponível em: https://www.correio24horas.com.br/noticia/nid/caixao-com-corpo-de-risco-biologico-por-covid-e-achado-em-estrada-no-interior-da-bahia/, acessado em: 04/02/2021.

[10] Idem 5

[11] Disponível em: https://jornaldebrasilia.com.br/saude/o-suicidio-como-consequencia-da-covid-19/, acessado em: 04/02/2021.

[12] Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/saude/2020/10/25/brasil-deve-chegar-a-mil-profissionais-de-saude-mortos-pela-covid-19, acessado em: 04/02/2021.

[13] Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2021/01/veja-historias-de-duplas-sejam-casais-ou-pais-e-filhos-que-morreram-de-covid-19.shtml, acessado em: 04/02/2021.

[14] Idem 13

[15] Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/saude/2020/12/17/com-pacientes-com-sequelas-hospitais-se-especializam-em-tratamento-pos-covid-19, acessado em: 04/02/2021.

[16] Disponível em: https://exame.com/brasil/as-vitimas-da-covid-19-e-da-falta-de-eficiencia-no-brasil/, acessado em: 04/02/2021.

[17] Disponível em: https://jornalgrandebahia.com.br/2021/01/brasil-e-as-vacinas-para-covid-19-o-que-nos-restam-por-angelo-augusto-araujo/, acessado em: 04/02/2021.

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Sobre Ângelo Augusto Araújo 54 artigos
Dr. Ângelo Augusto Araujo (e-mail de contato: angeloaugusto@me.com), médico, MBA, PhD, ex-professor da Universidade Federal de Sergipe (UFS), especialista em oftalmologia clínica e cirúrgica, retina e vítreo, Tese de Doutorado feita e não defendida na Lousiana State University, EUA, nos seguintes temas: angiography, fluorescent dyes, microspheres, lipossomes e epidemiologia. Doutor em Saúde Pública: Economia da Saúde (UCES); Doutorando em Bioética pela Universidade do Porto; Master Business Administration (MBA) pela Fundação Getúlio Vargas; graduado em Ciências Econômicas e Filosofia; membro do Research fellow do Departamento de Estatística da Universidade Federal de Sergipe; membro da Academia Americana de Oftalmologia; da Sociedade Europeia de Retina e Vítreo e do Conselho Brasileiro de Oftalmologia; e diretor-médico da Clínica de Retina e Vítreo de Sergipe (CLIREVIS), em Aracaju, Sergipe.