A lógica da delação e exculpação | Por Celso Tres

Celso Tres, procurador da República.
Celso Tres, procurador da República.

Ainda cicatrizando a unificação italiana, na qual Giuseppe e Anita Garibaldi, dantes bravos combatentes no Brasil meridional e Uruguai, tiveram heroico destaque, 1894, Nicola Framarino dei Malatesta, à luz do iluminismo, escreve “A lógica das provas em matéria criminal”, tendo influenciado a elaboração do nosso ainda vigente Código de Processo Penal, entre tantas preciosas e perenes sentenças, dito: “A verdade, em geral, é a conformidade da noção ideológica com a realidade; a crença na percepção desta conformidade é a certeza. A certeza é, portanto, um estado -do espirito, que pode não corresponder à verdade objectiva”.

Mais de século, 2015, o procurador Deltan Dallagnol pluralizou o título lançando “As lógicas das provas …”. Futuro ainda poderá dizer se disse algo a ser lembrado.

Prova é, muito além de ser a essência, ao fim e ao cabo o que de fato interessa no processo judiciário, dos grandes temas humanos.

Pontua o jornalista, professor e escritor Juremir Machado da Silva: “Ao contrário do que imaginam os seus críticos, a pós-modernidade é louca por provas. O problema dos pós-modernos com os modernos é que os primeiros acham que os últimos aceitam como prova tudo aquilo que corresponde às suas crenças”.

Jean-François Lyotard, autor do livro que praticamente deu o pontapé inicial ao debate sobre pós-modernidade nas ciências humanas, “A Condição Pós-Moderna”, questionava, escavando na história da filosofia, certezas modernas: o que prova que uma prova é uma boa prova e prova alguma coisa? Jorge Luis Borges, citando Agripa, o cético, sugeria que é impossível se provar alguma coisa, pois, “toda prova requer uma prova anterior” (Correio do Povo, 08/04/2016).

De standard probatório, corroborando Aury Lopes e Alexandre da Rosa, a partir da matriz teórica bem elaborada, a anglo-saxão, são os seguintes padrões:

– prova clara e convincente (‘clear and convincing evidence’);

– prova mais provável que sua negação (‘more probable than not’);

– preponderância da prova (‘preponderance of the evidence’); e

– prova além da dúvida razoável (‘beyond a reasonable doubt’).

Aqui, tratamos da lógica do meio específico de prova, a delação.

Na economia, a inflação decorre do desequilíbrio entre mais dinheiro/procura e menos bens e serviços/oferta. A relação entre crime e justiça também é pautada por um mercado próprio.

Toda delação traz apenas duas certezas: a) delator é um confesso criminoso; b) o delinquente não será punido, eis que perdoado ou brandamente sancionado (prisão domiciliar, pena de estudo, etc.) pelo Ministério Público/Judiciário.

A condenação do delatado dependerá, não da palavra do delator, mas das objetivas provas que corroborem o que ele diz. Daí a decorrência frequente: “Delação da Odebrecht gera poucos resultados em um ano” (Folha, 29.jan.2018).

Portanto, o delator é um criminoso convertido em assistente da acusação, remunerado pelo mercado da justiça mediante seu perdão, moeda da impunidade, na proporção direta em que ofertar delitos que outros tenham cometido. Assim, tudo passa ser crime.

Empreiteiro delinquente, mesmo tenha ele, sem qualquer contraprestação de corrupção, alcançado benefícios a políticos, dirá que eles foram criminosos.

Este cenário é agravado pelo interesse das instituições de justiça (fiscalização, polícia, Ministério Público) em sobrevalorizar sua importância, igualmente inflando mais delitos.

Tanto é mercado que, em 28 de agosto de 2016, a Folha revela a ‘bolsa delação’, ou seja, as corruptoras Odebrecht, OAS e Andrade Gutierrez garantem até 15 anos de salários para que seus subalternos delatem políticos, salvaguardando os patrões.

Delação é de ser instrumento negocial com os peixes, periferia da delinquência, para apreender os tubarões, gangsters do crime organizado. Do contrário, torna-se, invés de investigação, meio de exculpação.

Nenhum sentido em pactuar com Al Capone a prisão dos estafetas da máfia. Sem essa premissa, a invocação isolada de qualquer das hipóteses à colaboração (art. 4º da Lei 12.850/13) torna-se engodo, artifício a fazer do crime negócio vantajoso aos seus empreendedores.

Jamais, por exemplo, poderia ter sido firmada delação com Antonio Palocci. Ele foi ministro da Fazenda, no bolso, chave de cofre do erário, responsabilidade inigualável.

Na antiguidade, qual a resposta ao caixa que apropriasse o tesouro do rei? Leniência, comiseração? Era esquartejado em praça pública. Delito de lesa-majestade.

Estupefata, a nação acompanhou o duelo público entre Marcelo Odebrecht e Joesley Batista para definir quem teria mais políticos em sua carteira. Um, cerca de 500, outro, xeque-mate, 1,8 mil. Troféu Al Capone dos corruptores. Ambos foram aquinhoados, exculpados com delação.

E outros de somenos status no submundo do crime, a exemplo de Tacla Duran, por que não tiveram idêntica sorte?

Insolitamente, a Lava Jato protestou de público contra disposição do chefe da instituição, Augusto Aras, em levar adiante negociação com Tacla Duran.

Esse advogado, de longa data, aponta que fora alvo do pedido de propina, US$ 5 milhões para ter êxito na sua negociação da delação em Curitiba.

Solicitação da vantagem indevida teria vindo do também advogado, amigo, padrinho de Sérgio Moro, quem, juntamente com outro causídico que teria recebido parcela inicial de US$ 612 mil, trabalharam junto com a esposa do ex-juiz.

Desde sempre, o ex-ministro da Justiça certificou de público a inocência de seu dileto.

Duran teve vitória cujos precedentes não têm presença no rotina judiciária. A Interpol, órgão de estado, reunindo as polícias do mundo (fundado ainda 1923, sediado na França), reconheceu a suspeição de Moro, invalidando a busca internacional do mandado de prisão por ele expedido. Desmoralização à Justiça brasileira.

O que fez, afinal, Tacla à tamanha mobilização da persecução?

Rogo a quem honra-me com a leitura deste breve escrito que acompanhe a análise, acessando a íntegra das denúncias ajuizadas contra Duran (lavajato.mpf.mp.br).

Consoante acima exposto, a própria Lava Jato estabelece a hierarquia do crime nas denúncias: 1ºnúcleo (corruptores, empreiteiras); 2º núcleo (servidores públicos corruptos, agentes da Petrobrás, empossados pelos políticos corruptos); 3ºnúcleo (políticos corruptos); 4ºnúcleo (operadores do tráfego da propina, financeiros, lavadores).

A relevância de cada função é medida pela sua imaginária subtração e reflexo no resultado, ou seja, excluído corrupto ou corruptor, inexistirá delito. Porém, operador (4º núcleo), até porque facilmente substituível, presente ou não, jamais determinará o resultado.

O mais importante delator da Lava Jato é, precisamente, operador Alberto Youssef, quem já fora delator no caso Banestado/2004, tendo reincidido na criminalidade, fato que levou a Justiça Estadual do Paraná, com quem o Parquet local também pactuara colaboração premiada, determinar a revogação do benefício.

Claro nas denúncias que Duran nada mais é que um reles operador.

Do total de seis processos, emblemática a penúltima ação contra Tacla, 25.03.2019, com seis acusados. Porém, quatro são delatores, apenas dois são propriamente acusados, Duran e outro também operador, ou seja, as figuras centrais da delinquência, corruptos e corruptores, são colaboradores, exculpados pela delação.

Qual o sentido desta persecução? Mais. A principal atuação de Tacla foi em face da Odebrecht, a quem foi outorgado benefício a 78 delatores, ou seja, a todos, incluídos capos e estafetas.

Sergio Moro e amigos têm o inexorável presunção de inocência. Tacla Duran têm o ônus de provar. Porém, também inexorável que, com ou sem delação, a ele a Lava Jato mais que permitir, exija provar (art. 3º-B, §4º, Lei 12.850/13).

Recorrente a práxis tipificada como tráfico de influência (art. 332 do Código Penal), segundo o qual penaliza-se quem apresenta-se pedindo vantagem a pretexto de influir na atuação de agente público, sem a consciência desse, ‘in casu’, eventualmente imputável a circunstantes do ex-juiz.

Igualmente gravemente sancionado, ação pública incondicionada, a denunciação caluniosa (art. 339 do Código Penal), ‘in casu’, eventualmente imputável a Tacla.

Portanto, seja pela eventual corrupção, tráfico de influência ou denunciação caluniosa, certo mesmo é que a Lava Jato jamais poderia remanescer inerte ante a narrativa e apontamentos de Duran.

Firmasse ou não acordo de delação, sendo Tacla –não autor!- vitimado pelo delito (corrupção ou tráfico de influência), tem ele o dever de colaboração com a Justiça, não sendo o caso de descartar prova da delação malograda, eis que nada do que o próprio alcançou ao Parquet será utilizado contra o denunciante.

Excluídas essas hipóteses, incorreria Duran em denunciação caluniosa. Afinal, noticiou à autoridade delito de ação incondicionada, provocando sua inelutável atuação investigativa, agindo de má-fé (art. 3º-B, §6º, Lei 12.850/13).

Ante o exposto, pode-se dizer que a Lava Jato atentou, sim, contra a lógica da delação no caso Tacla Duran. Correto o PGR Aras em reexaminar.

Aliás, por que tamanho desconsolo da Lava Jato com a eventual mitigação de pena a reles operador?

*Celso Tres, procurador da República em Novo Hamburgo.

*Artigo publicado no Jornal Folha de S.Paulo, em 20 de junho de 2020.

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