Por que a imprensa venal é o câncer da democracia? | Por Jessé Souza

Jessé José Freire de Souza, sociólogo, professor universitário e pesquisador brasileiro que atua nas áreas de teoria social, pensamento social brasileiro e estudos teórico/empíricos.
Jessé de Souza, sociólogo, professor universitário e pesquisador brasileiro que atua nas áreas de teoria social, pensamento social brasileiro e estudos teórico/empíricos.
Jessé José Freire de Souza, sociólogo, professor universitário e pesquisador brasileiro que atua nas áreas de teoria social, pensamento social brasileiro e estudos teórico/empíricos.
Jessé de Souza, sociólogo, professor universitário e pesquisador brasileiro que atua nas áreas de teoria social, pensamento social brasileiro e estudos teórico/empíricos.

Entre todos os artistas que se envolveram no recente processo de desgaste da democracia brasileira, que culminou na eleição de um bufão da estirpe de um Jair Bolsonaro à Presidência da República, talvez tenha sido a imprensa venal – a grande imprensa a serviço do capital financeiro – quem tenha desempenhado o papel principal. É que a democracia não é feita dos tijolos e das paredes dos edifícios governamentais de Brasília. Ela é uma construção penosa, custosa e demorada de crenças compartilhadas. Nesse sentido, uma democracia pode levar séculos para ser construída, mas sua destruição é bem mais rápida e fácil quando não há uma tradição democrática consolidada, como é o caso do Brasil.

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Na elaboração dessas crenças compartilhadas, muita gente teve de perder a vida, foi perseguida ou torturada. Muitos, inclusive, por defenderem a liberdade de expressão, que é o grande valor de uma imprensa livre. Por causa disso, impressiona e surpreende o grau de venalidade e parcialidade da grande imprensa brasileira a partir de 2013. Afinal, os 25 anos que precederam essa data haviam sido de ampliação democrática e de relativa consolidação da Constituição de 1988. Parecia que o Brasil havia aprendido com os anos sombrios da ditadura militar. Não foi o caso.

Além disso, é burrice atacar a democracia se a atividade que você exerce sobrevive graças às garantias que ela proporciona. Acreditar que se pode fazer uma intervenção tópica, cirúrgica, com base na mentira e na manipulação da informação, para se eliminar um inimigo de ocasião e depois voltar à vida que se tinha antes é de uma miopia atroz. Toda ação humana tem que ser justificada no tempo. Sem isso, ela perde sua força de convencimento e as consequências de sua deslegitimação invariavelmente atingem seus algozes como um bumerangue. O curto-prazismo é, por causa disso, a definição mais abstrata e filosófica de burrice.

Com o ataque do governo Dilma Rousseff, em 2012, à política de juros escorchantes cobrados à população e servindo de base à sangria artificial da “dívida pública” – este grande esquema de corrupção legalizada para transferir recursos da população aos rentistas –, a relação amistosa da elite com o governo acaba. Ato contínuo, a imprensa, cujos donos não só vivem de anúncios de bancos, mas também devem boa parte do patrimônio aos bancos e têm os próprios ganhos multiplicados pela rapina rentista, aciona o modo de guerra contra o governo petista.

As assim chamadas “jornadas de junho de 2013” são a senha e a oportunidade esperada para o ataque frontal. Ali, já tinha ficado claro que, se o partido popular não fosse derrotado nas urnas, isso teria de ser feito em outro campo de batalha, no qual a imprensa venal constituiria o exército mais letal. A derrota de 2014, mesmo com o “petrolão” já sendo a principal moeda de ataque, levou à radicalização da imprensa. Foi a partir dali que começou a campanha de destruição, não apenas do PT, mas da tenra cultura democrática que havia se desenvolvido no país.

A associação com a Lava Jato – a verdadeira organização criminosa do Brasil recente – e sua indústria de “delações premiadas” e vazamentos ilegais levou a imprensa, sob o comando da Rede Globo, ao ataque a todos os princípios e as crenças que possibilitam a vida dos direitos e do Direito. São essas garantias jurídicas que permitem a vida democrática. Cabe lembrar que o Direito, como esfera social autônoma, só nasce quando a justiça deixa de ser exercida como privilégio do mais forte. As garantias universais do procedimento jurídico perfazem, nesse sentido, o Direito como esfera autônoma. Sem elas, o Direito se torna uma arma política de quem detém o poder e tem mais dinheiro e influência.

Lembro-me, em uma das poucas vezes que assisti ao jornal da GloboNews nesse período, do jornalista Merval Pereira, por ocasião de um dos milhares de ataques ao ex-presidente Lula, que replicou acusando o vazamento de ilegal, declarando que “vazamento ilegal sempre existe”, que é “normal” e, portanto, não é um problema real. Obviamente, esse é apenas um exemplo dentre milhares e milhares de ataques que são repetidos todos os dias. Banalizar e tratar como “normal” vazamentos ilegais é fazer o mesmo com os ataques à presunção de inocência de alguém, o que, em países com tradição democrática mais sólida, teria levado o jornalista à prisão.

Note bem, caros leitor e leitora, que não me refiro exclusivamente ao Lula. Como essas garantias jurídicas como fundamento da democracia ou são universalizáveis ou elas não existem, esse tipo de ataque diário e repetido mina e corrói por dentro as crenças democráticas enquanto tais. Elas terminam sendo percebidas como “empecilho” à justiça e não como proteção universal aos desmandos de moralistas de ocasião. Se juntarmos a isso a “coação das ruas”, que passou a ser empreendida especialmente contra o STF como instância garantidora de direitos fundamentais, pelo conluio da imprensa com a Lava Jato, então temos a origem de todos os desmandos e de destruição das crenças fundamentais do acordo – quase sempre implícito, mas ainda assim acordo – democrático.

A descrença recente na democracia e na política começou aí. O outro dado fundamental foi a mentira alimentada publicamente de que todos os problemas do país decorrem da corrupção política. É óbvio e ululante que qualquer tipo de corrupção é recriminável e tem de ser punida, mas a origem dos problemas brasileiros, como a pobreza de seu povo e a desigualdade, não está apenas, nem mesmo principalmente, na corrupção política. Só a sonegação de impostos das classes mais ricas – que a imprensa nunca divulga – é pelo menos 500 vezes maior segundo os especialistas do Tax Justice Network, da Inglaterra. Mas foi dito e repetido milhões de vezes ao povo brasileiro que bastava afastar os supostos corruptos da política, ainda que por meios espúrios, que se “limparia” o país de uma vez por todas.

Como isso não aconteceu, muito pelo contrário, parte da população se convenceu de que era necessário não um xerife de toga, mas de assassinos armados para “limpar” o país. É claro que estamos aqui no mundo das representações conscientes, já que o que efetivamente moveu o ódio da maioria dessas pessoas foi a reação classista e racista à anterior ascensão social de pobres e negros e a diminuição da distância social com a classe média e com a baixa classe média branca empobrecida – o “lixo branco brasileiro” que compõe a maioria do exército bolsonarista. Mas o trabalho da imprensa permitiu travestir esse ódio de classe com categorias morais, possibilitando sua expressão como “protesto justo”. De outro modo, o ódio puro e racista dos bolsonaristas não teria legitimidade de se expressar.

A grande imprensa venal, nas eleições de 2018, sancionou, portanto, o bufão neofascista participando ativamente da fraude eleitoral da “eleição sem debate”, montada por fake news e com doadores invisíveis. Agora, ainda que existam resistências tópicas e envergonhadas ao “flato humano” que ajudaram a eleger, a imprensa venal tende a tratar como “normal” o neofascismo ao se abster de denunciá-lo e de esclarecer o público carente quanto ao perigo que ele representa. Qualquer tipo de reconstrução democrática no Brasil, demore o tempo que demorar, tem de se debruçar sobre a questão da regulação pública de uma imprensa venal que se apresenta como neutra apenas para melhor enganar e manipular seu público indefeso.

*Jessé José Freire de Souza, sociólogo, professor universitário e pesquisador brasileiro que atua nas áreas de teoria social, pensamento social brasileiro e estudos teórico/empíricos.

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