Concerto em Salvador confirma poder transformador da música

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Música de câmara rara, uma estreia mundial e favoritas do repertório orquestral. Apresentação da Polyphonia Ensemble com Orquestra Juvenil da Bahia reforçou sucesso de programa de formação musical baseado em El Sistema

A previsão se confirmou. No concerto deste sábado (03/12), a sala principal do Teatro Castro Alves em Salvador, Bahia, com mais de 1.500 lugares, estava repleta. O programa foi dividido entre o conjunto de câmara alemão Polyphonia Ensemble e a Orquestra Juvenil da Bahia (OJB).

O enorme interesse tem uma explicação: desde seus recentes sucessos internacionais e de mídia, a OJB é “uma popstar da cidade”, explica Ricardo Castro, criador do projeto Neojibá, de formação de orquestras jovens.

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A façanha é tão mais admirável, considerando-se que a iniciativa tem apenas quatro anos de existência e que a capital do estado da Bahia não dispõe de uma tradição continuada de música erudita. Além disso, parte dos jovens entre 12 e 25 anos provém de famílias de baixa renda. Até pouco tempo, nenhum de seus parentes sequer ouvira uma orquestra ou pusera os pés em um teatro. Apesar disso, a atmosfera é tomada por extrema expectativa e concentração.

Os músicos alemães abriram a noite com uma obra rara: o Sexteto em mi menor de Gustav Holst (1874-1934). Enquanto sua suíte sinfônica The Planets tornou-se um dos greatest hits do repertório erudito, o restante da obra do compositor britânico permanece injustamente negligenciado. Este é o caso da peça para oboé, clarinete, fagote, violino, viola e violoncelo, da qual sequer existe uma gravação.

O Polyphonia Ensemble preferiu limitar-se a executar o primeiro dos quatro movimentos do Sexteto – Moderato –, a fim de dar lugar a dois quintetos de sopros formados por membros da orquestra jovem, executando obras de Johann Christian Bach e Danzi, com musicalidade e destreza louváveis.

Inspirado pelos mestres 

O ponto alto da metade camerística do concerto foi uma encomenda da Deutsche Welle. O paulista André Mehmari, de 34 anos, baseou seu septeto Variações Villa-Lobos em temas da obra orquestral Bachianas Brasileiras nº 7, do grande mestre do Modernismo musical sul-americano.

Além de ser um dos mais bem sucedidos compositores brasileiros de sua geração, Mehmari é exímio instrumentista, e assumiu a parte do piano da obra de câmara. As Variações atestam um sólido conhecimento da música erudita europeia, desde o contraponto bachiano até uma citação de Igor Stravinsky, passando pela técnica de variação beethoveniana. Assim como nas Variações Diabelli, a peça de Mehmari descreve um arco dramático definido, explorando temperamentos extremos.

Embora preparada em apenas poucos ensaios, a estreia fluiu com naturalidade e brilho. Era sensível o prazer de tocar dos músicos do Polyphonia Ensemble, os quais, nas palavras do compositor, realmente “vestiram a camisa” da obra inédita. E o aplauso entusiástico do público do Teatro Castro Alves confirmou o sucesso da combinação, própria de Mehmari, de técnicas eruditas, ritmos populares, efeitos modernos e líricas melodias. Sob a boa égide do patriarca Heitor Villa-Lobos, naturalmente.

Shooting star de El Sistema

A proposta dos Núcleos Estaduais de Orquestras Juvenis da Bahia (Neojibá) inspira-se nos quase 40 anos de experiência de José Abreu com o programa de formação musical El Sistema, da Venezuela. Suas bases são a prática precoce da música em cojunto, instrução informal entre os jovens colegas e a crença no poder transformador da beleza.

Assim, nada mais oportuno do que o maestro da noite ser Manuel López Gómez. Natural de Caracas, ele começou em El Sistema aos seis anos de idade, ao violino, para depois adentrar pela regência. E hoje é uma das figuras de proa do programa venezuelano, ao lado do já célebre Gustavo Dudamel, de quem é amigo e assistente.

Ao vivenciar os ensaios de López com a jovem orquestra baiana, é fácil esquecer que ele conta apenas 28 anos. Pois a profundidade e clareza de sua visão musical são tão grandes quanto sua determinação pedagógica, e a quantidade de métodos a que sabe recorrer, a fim de retirar dos músicos o som e a expressão necessários.

Sobretudo ao tratar com as cordas, Manuel López emprega termos técnicos precisos, sugere posições e dedilhados. Mas também recorre a metáforas por vezes mirabolantes: “O som dos trombones está muito ‘arenoso’. Precisa ficar mais amalgamado [esfrega um punho sobre o outro], como mel”. Diante de uma dificuldade rítmica, lembra, austero, que música é matemática, que tudo tem um pulso, “ta-ta-ta-ta, até as flores têm pulso, está cientificamente provado”. E assim conquista progressos inacreditáveis em curto espaço de tempo.

Prata da casa

E chegou a ansiada hora dos popstars de Salvador. A Orquestra Juvenil abre sua parte com o primeiro movimento da Sinfonia Inacabada de Franz Schubert. Para eles, esta é claramente a peça mais difícil do programa. Talvez por Schubert permanecer sempre camerístico, mesmo ao escrever para a orquestra, analisará Manuel López mais tarde. Ainda assim, a façanha musical é notável.

Segue-se um momento mágico. Com toda a orquestra e maestro presentes, as luzes do palco se apagam, deixando apenas dois tênues focos, um sobre a estante do primeiro violino, outro sobre o piano, no fundo da orquestra. E o spalla da noite, o berlinense Markus Däunert, executa o movimento final do Quarteto para o fim dos tempos, de Olivier Messiaen, acompanhado pelo fundador do Neojibá, o também pianista e regente Ricardo Castro.

Nessa disposição anticonvencional, o sublime duo, composto e estreado num campo de concentração alemão, confirma sua dimensão metafísica: a intimidade entre o violino e o piano se acentua na distância física entre os dois solistas, na total ausência de contato visual. “Nunca me senti tão perto do Ricardo”, afirma Däunert. E a longa e agudíssima nota final do violino se revela mais angelical e dolorosa do que nunca ao ser interrompida pelo brusco acender das luzes e pelo grito inumano dos metais que introduz a Dança dos Capuletos, do Romeu e Julieta de Serguei Prokofiev.

A popularíssima peça, explorada em shopping centers e comerciais de perfume, chega precisa, com toda a brutalidade exigida pelo compositor russo. Quem a escutou no ensaio da véspera mal pode acreditar no progresso que os instrumentistas fizeram, orientados pelo regente venezuelano. E o espanto é ainda maior na obra seguinte, o esfuziante último movimento da Sinfonia nº 4, de Piotr Tchaikovsky. Apenas ocasionais problemas de equilíbrio ou afinação lembram não tratar-se de uma orquestra profissional.

Terminado o programa oficial, o maestro López troca o blusão negro pela camiseta do Neojibá, para apresentar as peças de bis. E aí todo mundo perde a compostura. Durante a execução da brasileira Tico-tico no fubá ou do Mambo de West Side Story, os músicos têm a liberdade para se levantar, dançar, desafiar os colegas, improvisar coreografias em grupo; o público ri e bate palmas em ritmo.

O efeito é irresistível. Ao final, alguns espectadores saem cantarolando os temas musicais da noite. Um ou outro expert improvisado afirma em alto e bom som que a OJB “é a melhor orquestra do mundo”. Ponto para a música erudita. Ponto para a determinação dos organizadores do Neojibá, o talento dos jovens músicos e o apoio dos profissionais alemães. E ainda mais um ponto para o poder transformador da beleza.

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