As cotas na UFRJ, artigo de Renato Lessa

Juarez Duarte Bomfim.
Juarez Duarte Bomfim.

“O corte social associado à pobreza designa um contingente móvel: trata-se de aplicar critérios de justiça que impliquem a sua erradicação”. Renato Lessa é professor da Universidade Federal Fluminense (UFF) e diretor-presidente do Instituto Ciência Hoje. Artigo publicado em “O Globo” e Jornal da Ciência (JC e-mail 4090, de 06 de setembro de 2010)

O Conselho Universitário da Universidade Federal do Rio de Janeiro, em decisão de há poucos dias, aprovou a adoção de cotas sociais para a definição de vagas para ingresso de novos estudantes. O critério social contempla estudantes matriculados na rede pública e provenientes de famílias de baixa renda.

Trata-se de uma combinação entre experiência escolar e renda como critérios compensadores de desvantagens presentes na estrutura da sociedade.

A decisão da UFRJ – defendida abertamente pelo reitor Aloísio Teixeira – impõe-se como alternativa à adoção de cotas raciais. Nessa orientação, a UFRJ soma-se à USP no que diz respeito à criação de sistemas alternativos de acesso à vida universitária, que não se rendem ao racialismo em curso.

Pelo desenho adotado pela UFRJ, parte das vagas para ingresso na universidade será atribuída a estudantes pobres e egressos do sistema de ensino secundário público. A política em vigor na USP tem características distintas, porém parte do mesmo fundamento, qual seja o de privilegiar dimensões sociais e não marcas “étnicas” ou “raciais”.

O Inclusp – sigla que designa o programa da USP – confere a alunos provenientes de escolas públicas um acréscimo de 3% na nota do exame de vestibular. O modelo uspiano não considera renda ou “raça”, pois parte da premissa de bom senso que há forte concentração de estudantes pobres e negros no ensino público secundário. Tanto que as avaliações feitas a respeito do programa reconhecem o aumento no número de negros e índios entre os novos estudantes, a despeito da não consideração desses aspectos na definição da política de inclusão.

O critério adotado pela UFRJ combina de forma engenhosa dois marcadores importantes: origem da escolaridade e renda. Ambos terão como efeito uma vigorosa entrada de estudantes negros e pardos na vida universitária, a despeito da não consideração explícita desse critério.

Vejamos: segundo os dados da PNAD de 2007, entre os estudantes pobres do ensino médio, com renda familiar abaixo de 1,5 salário mínimo, cerca de 56% são negros ou pardos, e 44%, brancos. Ignoro qual o corte de renda a ser adotado pela UFRJ, mas é de se imaginar que uma política de inclusão que se oriente por critério de renda terá como efeito a maior inclusão do segmento mais excluído.

O mesmo raciocínio pode ser aplicado à origem da escolaridade. Esmagadora maioria dos estudantes pobres está na rede pública de ensino (92%). Logo, o foco na rede pública beneficiará inequivocamente os estudantes pobres. Se considerarmos variáveis de “raça”, teremos que 95% dos estudantes pobres negros e respectivamente 94% e 86,6% dos seus equivalentes pardos e brancos estão na rede pública.

Dada maior presença dos negros e pardos no contingente da pobreza, é imperativo concluir que a maior parte dos estudantes pobres da rede pública é negra e parda. Se a origem escolar na rede pública for considerada, por simples ilação lógica, os estudantes negros, que são a maior parte dos estudantes pobres, serão o principal contingente incluído.

Duas questões mais gerais devem ser consideradas a partir do importante gesto de democratização de acesso produzido pela UFRJ.

Parece ser indisputado o fato de que uma política que inclua pobres – negros e brancos – é dotada de critério de justiça mais robusto e abrangente do que outra que inclua apenas negros, pobres e não pobres. O contingente prioritário pretendido pelo segundo recorte é coberto, com vantagens, pelo primeiro critério, que aos negros pobres acrescenta os brancos pobres. Em nome de que reduzir o alcance da inclusão a definições “raciais”? O vastíssimo contingente da destituição social de pele clara não merece reparações?

E este é um ponto fundamental, critérios raciais e critérios sociais não são variantes de um mesmo vetor, voltado para generosa inclusão dos barrados estruturais da sociedade brasileira. Há uma distinção fundamental. O corte social associado à pobreza designa um contingente móvel: trata-se de aplicar critérios de justiça que impliquem a sua erradicação.

Em outros termos, a ideia é a de incluir pobres para que eles deixem sua condição originária. O critério “raça”, ao contrário, é fixo. Trata-se aqui de incluir para reconhecer uma diferença permanente e, por essa via, de reinventar a história do país como constituída por inapelável “luta de raças”.
(O Globo, 6/9)

*Com informação do Jornal da Ciência (JC e-mail 4090, de 06 de setembro de 2010)

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Sobre Juarez Duarte Bomfim 725 artigos
Baiano de Salvador, Juarez Duarte Bomfim é sociólogo e mestre em Administração pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), doutor em Geografia Humana pela Universidade de Salamanca, Espanha; e professor da Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS). Tem trabalhos publicados no campo da Sociologia, Ciência Política, Teoria das Organizações e Geografia Humana. Diversas outras publicações também sobre religiosidade e espiritualidade. Suas aventuras poético-literárias são divulgadas no Blog abrigado no Jornal Grande Bahia. E-mail para contato: juarezbomfim@uol.com.br.

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