
Na sexta-feira passada, a história da imprensa brasileira ganhou uma página de rara clareza – e de rara Justiça. Nesse dia, 6 de novembro de 2009, o Diário da Justiça publicou o acórdão redigido pelo ministro Carlos Ayres Britto, do Supremo Tribunal Federal (STF), que sepulta de uma vez por todas a antiga Lei de Imprensa (Lei nº 5.250/67). O acórdão deu forma final à decisão que o STF tomara em abril, quando declarou que a velha lei não fora recepcionada pela Carta Federal de 1988, sendo, portanto, inconstitucional. Mas o acórdão é bem mais que uma formalidade: o arrazoado do ministro-relator prima ao mesmo tempo pela precisão jurídica, pela prudência humanista e pela radicalidade democrática. Trata-se de uma página histórica, em que o maior ideal da Justiça se reconcilia com o melhor espírito do jornalismo.
As palavras de Ayres Britto repõem o que a Justiça entende por liberdade de imprensa. Já era tempo. Além da velha Lei de Imprensa, elas removem do ambiente jurídico uma violência obscura que aturdia a normalidade democrática: a censura prévia imposta por decisão judicial, uma extravagância interpretativa que vinha se convertendo em regra, vitimando leitores de diversos jornais brasileiros – entre os quais os do O Estado de S. Paulo. Atente-se para o que escreve o ministro-relator:
“O pensamento crítico é parte integrante da informação plena e fidedigna. O possível conteúdo socialmente útil da obra compensa eventuais excessos de estilo e da própria verve do autor. O exercício concreto da liberdade de imprensa assegura ao jornalista o direito de expender críticas a qualquer pessoa, ainda que em tom áspero ou contundente, especialmente contra as autoridades e os agentes do Estado. A crítica jornalística, pela sua relação de inerência com o interesse público, não é aprioristicamente suscetível de censura, mesmo que legislativa ou judicialmente intentada.”
Há mais: “Não há liberdade de imprensa pela metade ou sob as tenazes da censura prévia, inclusive a procedente do Poder Judiciário, pena de se resvalar para o espaço inconstitucional da prestidigitação jurídica.”
O ministro ensina que a dignidade humana só se alcança num regime de liberdade: “O corpo normativo da Constituição brasileira sinonimiza liberdade de informação jornalística e liberdade de imprensa, rechaçante de qualquer censura prévia a um direito que é signo e penhor da mais encarecida dignidade da pessoa humana, assim como do mais evoluído estado de civilização.”
Contra os que, espertamente, argumentam que a “honra” – pessoal ou familiar – pode servir de argumento legal para amordaçar repórteres, Ayres Britto lança outra lição. Para ele, a instituição do jornalismo livre e independente precede “as relações de intimidade, de vida privada, imagem e honra”, e, em hipótese alguma, pode-se conceber que alguém, sob a alegação de proteger a própria honra, peça que a Justiça censure jornalistas. Diz o ministro:
“As relações de imprensa e as relações de intimidade, vida privada, imagem e honra são de mútua excludência, no sentido de que as primeiras se antecipam, no tempo, às segundas; ou seja, antes de tudo prevalecem as relações de imprensa como superiores bens jurídicos e natural forma de controle social sobre o poder do Estado, sobrevindo as demais relações como eventual responsabilização ou consequência do pleno gozo das primeiras.”
Com efeito, a lei assegura aos ofendidos todos os canais para que reclamem, em juízo, pelos danos que julgam ter sofrido. Mas a posteriori, assegurando-se primeiro a livre e plena manifestação do pensamento, da criação e da informação.
Qualquer coisa fora disso é o arbítrio. Acalentar a ilusão de que um poder de Estado – o Judiciário ou qualquer outro – possa substituir as redações independentes na decisão sobre o que deve ou não ser publicado é aninhar um projeto antidemocrático. Não cabe ao poder controlar a imprensa. Aliás, o que a democracia exige é justamente o oposto.
“Ela, Constituição, destinou à imprensa o direito de controlar e revelar as coisas respeitantes à vida do Estado e da própria sociedade.” Nada mais precisa ser dito. É a mais alta Justiça quem assegura: a lei não é um freio, mas um esteio para a plena liberdade de imprensa.
*Com informações do Editorial do jornal ‘O Estado de S. Paulo’.