O aluno modelo

Faltam poucos minutos para o término da aula de Geografia. O professor desenha na lousa o mapa da Europa e, de costas para a sala, está às turras com o curso do Danúbio. Já se sabe que o professor de Matemática está doente e a preocupação maior de toda a classe é saber se a turma será dispensada ou se será escalado alguém para preencher o vazio. A torcida a favor da debandada ganha de goleada dos esforçados. Imaginem só: a aula de Matemática seria a última. Sair uma hora mais cedo seria “animal”. O assunto está sendo debatido acaloradamente, em voz alta, naturalmente.

De vez em quando o professor pede silêncio, sem olhar para a classe. Está cansado. Ainda hoje tem de tirar o carro do funileiro. Mal pode esperar para ver se conseguiram consertar decentemente a lateral amassada. Ir de ônibus até a oficina, nesse final de dia, pegando o horário de pico significa uma tor­tura. Será que essa turma barulhenta não percebe?

Na sua carteira, lá na primeira fila, o aluno modelo está alheio a tudo. Não importa se haverá ou não a última aula. Por enquanto, a penúltima não terminou. Seu olhar, camuflado pelos óculos de lentes grossas, segue atentamente o desenho do mestre. Uma bolotinha de papel, arremessada do fundo da sala, atinge a sua nuca. Brincadeira idiota. Melhor ignorar. Se der bola, aí não seria apenas um e sim vários projéteis. A rigor, ele é benquisto. Às vésperas das provas, seu fone não pára de tocar e, pacientemente, ele vai tirando as dúvidas de todos. Não bastassem os telefonemas, eles ficam em cima dele na sala de aula, no corredor, no páteo.

Quase sempre a resposta correta está na ponta da sua língua. Atrapalha-se apenas quando a menina de cabelos cacheados se aproxima dele, pedindo ajuda. Não é sem razão. Ela é de longe a mais bonita da classe. Namora um rapaz do último ano. Do terceiro científico, como diz o pai dele, avesso à nova nomenclatura. Nesses momentos, o saber deixa de fluir. Mal consegue pingar, como se fosse água saindo de uma torneira velha mal fechada. O olhar da menina consegue deixá-lo desarvorado, mais escarlate que um pôr de sol. Sente-se ridículo, tenta sem sucesso acalmar-se. Gostaria tanto de falar sobre outras coisas, mas a coragem desaparece. Pior quando, no meio de uma explicação, ela dá uma risada, decide que já sabe o suficiente e o deixa plantado para bater papo com alguém. Naqueles momentos ele tem vontade de transformar-se num desses impávidos cavaleiros medievais, cujas lendas admira e levá-la para a torre mais alta de um castelo encantado. Faria qualquer coisa para ela. Justamente no dia em que ela pediu algo diferente, ele falhou.

– Você tem um chiclete?

– Nnnão, não tenho.

Impossível esquecer a careta de desilusão no rostinho encantador. A partir daquele dia, nunca deixou de trazer chiclete. Mas a oportunidade só bate uma vez na porta. Pensando nisso, ele olha na direção da menina de cabelos cacheados. Como é linda! Se ao menos ela olhasse na direção dele. Admirá-la por alguns segundos o afasta do mapa da Europa. Que se dane.

Nem sempre há tempo para se ter consciência da própria falta de empenho. Eis que, do fundo, uma bolota de tamanho maior, arremessada com força, quase o acerta. Tempo para se abaixar, e olha lá, mas o míssil, continuando sua rota, acerta o professor, enquanto o Danúbio, deixando a Áustria, seguia o traço de giz em direção à Hungria. Risadas abafadas saúdam a proeza.

Há momentos em que falta paciência.Com o risco de causar uma inundação em território magiar, o professor abandona o Danúbio e, fato surpreen­dente, eleva o tom de voz:

– Muito bem, quero saber quem fez isso.

Silêncio total. Como seria bom se eles ficassem assim o tempo todo.

– Falta de respeito tem limite. Quero saber quem foi o engraçadinho. Vamos um pouco de coragem. Quem fez deve assumir.

A classe continua silenciosa.

– Então já que ninguém jogou, terei que admitir que foi um ato de indisciplina coletiva. Isso é uma indignidade.

– O quê… fessor? Que é isso?

– Tenho um remédio que deverá permitir que vocês reflitam. A nota da próxima prova virá com desconto de três pontos. Quem está precisando de oito… Já viram… Inteligentes como são, fizeram as contas e descobriram que a nota máxima não poderá passar de sete… Última oportunidade.

Aparentemente, a ameaça não consegue intimidar.

– Então vamos ter jogo duro. Todos começam com menos três e posso garantir que a prova não será “uma teta”, como costumam dizer.
Como resposta, do fundo da sala inicia-se um hummm, que ganha força, à medida que aumenta a adesão, até chegar-se a um mugido constante.

– Chamarei o Senhor Diretor.

A turma confabula. “Mancada, ô meu!” “Ele ia deixar barato.” “Sujou.”

O diretor é temido. Com ele não tem brincadeira Entra sem o professor e, já sem paciência, declara.

– Tudo bem. Nem quero saber do que aconteceu hoje. Uma coisa não vou tolerar. É a falta de disciplina. Não contentes com isso, faltou respeito humano. Os adultos de amanhã estão começando bem. Como podem fazer uma coisa dessas com uma pessoa tão boa como o seu professor? Não estou ouvindo nada. O que têm a me dizer?
Ninguém abre a boca. O momento exige prudência. Ele é bem capaz de segurar todo o mundo, mesmo sem ter aula. Aí adeus passeio no shopping. Sem contar o que ainda poderá inventar.

– Quero saber quem causa aborrecimentos ao professor. Eu tenho tempo. Ninguém sai daqui se não houver resposta

O aluno modelo está com a cabeça alhures. Ele é provavelmente o mais disciplinado da turma. Esses covardes não ousam se acusar. Se houver castigo, a menina de cabelos cacheados não escapa. Não, ela não!

Eles precisam de um exemplo. Falta um ato de bravura. Um desses atos que só os cavaleiros medievais praticavam. Bastaria que ele assumisse causar aborrecimentos ao mestre e, sem dúvida, os demais, que bem sabem ter culpas muito maiores, seguiriam seu exemplo. Afinal todos chateiam o… fessor. Ele muito, mas muito menos … Como seria possível existir alguém totalmente inocente? Ele tem de ser o primeiro em tudo até para admitir uma culpa. Procura o olhar dela. Ela está cabisbaixa. Um gesto, falta um gesto. Surpreende-se, dizendo:

– Eu já causei aborrecimentos.

O silêncio torna-se sepulcral. Os olhares convergem em sua direção. Ela também olha. “Com certeza deve ter ficado impressionada”.

– Pois está suspenso. Só voltará às aulas depois de eu ter uma conversa séria – e como destacou essa palavra – com seus pais.
O aluno modelo permanece atônito. Lágrimas de revolta acumulam-se, turvam-lhe a vista . De herói da turma a vilão em poucos miseráveis segundos. O professor voltou. O traço do Danúbio avança em direção ao seu delta, indiferente ao pequeno drama. Derrotado o aluno modelo sai calado, procurando encontrar um olhar de aprovação escondido por lindos e indiferentes cachos loiros.

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