Falam os presidiários. Relatos de experiências do uso de Ayahuasca na Barquinha de Ji-Paraná, Rondônia

Juarez Bomfim palestrando sobre Ayahuasca, na Acuda
Juarez Bomfim palestrando sobre Ayahuasca, na Acuda

Introdução

Entre os anos de 2012 e 2016, uma profícua experiência foi desenvolvida com o uso de Ayahuasca, através de um convênio entre a ONG Acuda e a instituição religiosa ayahuasqueira Lar de Frei Manuel (Barquinha).

A Acuda — Associação Cultural e de Desenvolvimento do Apenado e Egresso — é uma ONG (Organização Não-Governamental) que há mais de 16 anos tem como objetivo a reabilitação de presidiários e a sua reinserção na família e na sociedade, durante e após o cumprimento da pena. Está sediada em Porto Velho, capital de Rondônia.

A Acuda desenvolve atividades de reabilitação de apenados do regime fechado e semiaberto. São traficantes de drogas, estupradores, pedófilos e homicidas. Os detentos participam de diversas atividades como laborterapia e terapias alternativas, tipo massagem ayurvédica, banho de argila, yoga, reiki, meditação, eneagrama, teatro gestaltico, entre outras atividades.

A filosofia que norteia as ações da Acuda é inspirada nos ensinamentos do psiquiatra chileno Claudio Naranjo, renomado pesquisador das qualidades terapêuticas da Ayahuasca, e isso motivou os dirigentes da ONG a buscarem uma instituição ayahuasqueira com a proposta de estabelecer um convênio de cooperação caritativa.

A Acuda conseguiu acolhida e aceitação do seu projeto em uma Igreja de Daime a 360 km de distância: o Lar de Frei Manuel, em Ji-Paraná – Rondônia.

Daí que em 2012 se firmou o convênio entre a Acuda e o Lar de Frei Manuel, assim como os critérios para participação. Os apenados do regime fechado ou semiaberto que passaram a visitar as cerimônias religiosas da Igreja ayahuasqueira, foram aqueles participantes do programa de reabilitação que já frequentavam as atividades da Acuda há seis meses ou mais, e participaram aos rituais de livre e espontânea vontade.

A Igreja de Daime de Ji-Paraná denomina-se ‘Centro de Regeneração Espiritual Casa de Jesus e Lar de Frei Manuel’, entidade filantrópica sem fins lucrativos, juridicamente constituída. Pratica a Doutrina Espírita Cristã fundada por Mestre Daniel Pereira de Mattos – a Barquinha.

Com autorização do Juiz Corregedor dos Presídios, pequenos grupos e, posteriormente, de 10 a 20 apenados passaram a frequentar as cerimônias religiosas uma vez ao mês ou mais, após uma viagem de 360km. Eles viajavam sem nenhum tipo de escolta. Só os presos, a psicóloga e os diretores da ONG Acuda.

A originalidade deste convênio estava em atender os prisioneiros fora da penitenciária. É costume que a maioria das denominações religiosas criem células dentro dos presídios, desenvolvam trabalhos dentro das prisões. Todavia, o presidente da Barquinha de Ji-Paraná, Edilsom Fernandes da Silva, estabeleceu que o Centro Espírita ayahuasqueiro por ele dirigido não iria às prisões ou à sede da Acuda, e sim o contrário.

Sobre essa interessante experiência do uso de Ayahuasca com presidiários, escrevi 2 artigos. Links a seguir:

http://jornalgrandebahia.com.br/2016/02/uso-da-ayahuasca-para-a-reabilitacao-de-presidiarios-no-lar-de-frei-manuel-em-rondonia/

http://jornalgrandebahia.com.br/2016/05/ayahuasca-e-projeto-acuda-cooperacao-para-ressocializacao-de-presidiarios-em-rondonia/

Juarez Bomfim palestrando sobre Ayahuasca, na Acuda
Juarez Bomfim palestrando sobre Ayahuasca, na Acuda

O presidiário e o sistema penitenciário brasileiro

No Brasil, já há mais de um século foi abolida a pena de morte, dando início a uma nova era no conceito de punir o indivíduo infrator. Assim, criou-se o regime penitenciário de caráter correcional, ou seja, que tinha como finalidade ressocializar e reeducar o presidiário.

A ideia de ressocialização do condenado sempre foi resgatar o indivíduo que infringiu uma determinada lei. A partir dessa ideia, o sistema carcerário procurou mecanismos socializadores, nos quais os órgãos responsáveis buscariam aprimorar seus estabelecimentos prisionais com o máximo de respeito à pessoa humana do preso. Entretanto, no Brasil do Século XXI tem acontecido justamente o contrário.

Com o aumento da violência social nas últimas décadas do Século XX, optou-se pelas prisões em massa, em consonância com uma tendência mundial. A ideia de recuperação dos criminosos enfraqueceu-se, em boa medida, por causa de iniciativas surgidas nos Estados Unidos, a exemplo da política de tolerância zero. Venceu a ‘linha-dura’, defensora da segregação de quem comete um delito.

Segundo especialistas em criminologia, apesar de seguir uma tendência mundial, o encarceramento massivo no Brasil tem suas peculiaridades, a começar pelo foco em crimes contra o patrimônio (furtos, roubos) e drogas. E o paradoxo é que o aumento do encarceramento aumentou a violência, segundo mostram os estudos.

A cultura do medo disseminada na opinião pública brasileira estimula o encarceramento massivo. E o cenário mais frequente passa a ser dos prisioneiros serem submetidos a tratamentos brutais permanentes, em condições de miséria e superlotação carcerária. Muitos presídios são administrados por facções criminosas, condição a qual o Estado assiste impotente. Um sistema prisional que não recupera o apenado e parece um matadouro ou universidade do crime — essa é a triste realidade.

Todavia, esta situação não parece ser algo puramente circunstancial. As sociedades atuais são excludentes e desprezam os indesejados.

E qual é a condição de vida dos “indesejados”… digo, dos presidiários?

O indivíduo apenado perde direitos básicos e fundamentais que fazem parte da vida de qualquer ser humano: perdem a liberdade, o convívio familiar e a vida em sociedade; perde o direito de ir e vir; perde o direito à sua autoimagem, com a despersonalização e coisificação na forma de um número de registro, sem pertences e roupas, vestindo uniforme. Obrigatório adotar postura de submissão, andando com as mãos para trás, sem encarar as autoridades carcerárias.

Perde direitos civis como o direito ao voto, o direito de se responsabilizar pelos próprios filhos; perde o direito à privacidade, isto porque na maioria dos presídios não existe nenhuma privacidade, e o apenado passa a ser exposto aos olhares dos outros, seja no pátio, no banho de sol, no dormitório coletivo e no banheiro.

É obrigado a conviver de maneira íntima com pessoas que não escolheu e que muitas vezes não são bem toleradas pelos seus comportamentos. “Suas visitas são públicas, correspondência lida, censurada. Além de saber que está sendo vigiado em seus gestos; fica sem a sua dignidade de dispor do seu dinheiro uma vez que passa a ser mantido não mais por seu trabalho”.

(Ver

https://lipeoliveira336.jusbrasil.com.br/artigos/324482464/as-consequencias-do-sistema-prisional-brasileiro)

Acrescente a isto condições de vida subumanas e precárias do sistema carcerário brasileiro, onde a regra básica é a violência, e os mais fortes dominam os mais fracos. A superlotação gera violência sexual entre os reclusos, fazendo com que doenças graves se alastrem. Entorpecentes são apreendidos com frequência.

Na Era da Informação, onde todos têm acesso rápido e fácil aos fatos, não é  desconhecido de ninguém que muitos presídios brasileiros são uma espécie de “campos de concentração” ou “ campos de extermínio”, no melhor estilo nazista, durante a II Guerra Mundial (1939-1945).

Apesar desse conhecimento, a intolerância da opinião pública para com os presidiários é tamanha, que regularmente considera suaves e pequenas as penalidades e criticam o regime de progressão de penas. Parte da sociedade anseia que o prisioneiro pague com sofrimento e dor permanentes e desumanos por seus crimes.

Todavia, como já explicitamos, a doutrina jurídica penal considera que a prisão como forma de punição, possui a função de reeducar o condenado, para que este volte ao convívio social de maneira equilibrada, respeitando as normas e princípios estabelecidos para a convivência harmoniosa. A ressocialização deve ter o intuito de resgatar a dignidade da pessoa humana, a autoestima do condenado, para a reinserção familiar e social.

Porém, o sistema carcerário brasileiro não está preparado para produzir efeitos positivos no encarcerado, muito pelo contrário, eles pioram o encarcerado, sendo assim dessocializadores, por culpa do Estado e da sociedade, que são omissos e/ou ineficazes em assumir suas responsabilidades.

O que de fato acontece é que o sistema penitenciário brasileiro, ao invés de ressocializar, acaba por condenar ainda mais o indivíduo para além de sua condenação, desprezando o seu direito a uma nova oportunidade na sociedade, depois de cumprida a pena.

Embora nas penitenciárias haja projetos para reduzir a pena do condenado e serem importantes instrumentos para garantir dignidade ao apenado, essas iniciativas ainda não são capazes de, por si só, garantir sua ressocialização, que é algo de caráter mais social do que jurídico.

Saúde mental dos presidiários

Transtornos psiquiátricos são comuns entre presidiários e o tratamento de saúde mental poderia ajudar apenados e egressos a se reintegrarem à família e a sociedade.

As causas para o desenvolvimento de patologias mentais são muitas: superlotação, ociosidade, falta de higiene, pouca circulação de ar, o aumento no risco de doenças infecciosas e o uso de drogas dentro do Sistema,

A privação da liberdade pode ser considerada por si só um fator estressante. Segundo pesquisas, o distúrbio mais frequente apresentado em ambos os gêneros — presidiários e presidiárias — foi o relacionado ao transtorno fóbico-ansioso, no qual estão inclusos o pânico, a agorafobia e o transtorno de estresse pós-traumático; o segundo maior distúrbio encontrado entre os detentos, é o considerado de natureza afetiva, como transtorno bipolar e depressão.

Há uma relação forte e duradoura entre o encarceramento e condições psiquicas que prejudicam o humor, como a depressão. Além disso, pesquisadores constataram que os efeitos psicológicos da prisão persistem mesmo após a libertação.

Os transtornos mentais adquiridos nas penitenciárias estão fortemente relacionados com outras deficiências, como a diminuição da capacidade de estabelecer relações sociais e de se concentrar em atividades diárias, como o trabalho.

A frequência de suicídios cometidos em prisões é alarmante: a taxa de suicídio entre presidiários é muitas vezes maior que a taxa de suicídio na população em geral, comparativamente.

O agravante disso tudo se encontra nas deficiências estruturais do sistema público de saúde, que precariamente alcança os presídios.  Mais da metade das cadeias não tem módulo de saúde.

Para José Rodrigues de Alvarenga Filho, especialista em Psicologia Jurídica pela UERJ, muitos dos traumas psicológicos seriam eliminados se as prisões não sofressem com tanta superlotação. O número de pessoas presas entre os anos de 2000 e 2014 passou de 232 mil para mais de 607 mil detentos no país, representando um aumento de 119% na população carcerária. O perfil do encarcerado é majoritariamente de jovens negro-mestiços e pobres. São réus preferencialmente vitimados pela dura e intolerante Lei de Drogas, de 2006 (Lei 11.343/06).

José Alvarenga Filho, psicólogo, define o flagelo: “é um descaso do poder público e da sociedade. Para as pessoas os presos não são humanos, o seu extermínio não é percebido como crime ou fatalidade, porque ele não merece pena ou nova chance. É um sujeito que deve ser eliminado”.

(ver

http://azmina.com.br/2016/06/transtornos-mentais-atingem-68-das-mulheres-encarceradas-no-estado-de-sao-paulo/)

Há luz no fim do túnel?

Daí a importância de Organizações Não-Governamentais como a Acuda (Associação Cultural e de Desenvolvimento do Apenado e Egresso) em Porto Velho – Rondônia, que tem como objetivo a reabilitação de apenados e egressos do sistema carcerário.

A Acuda, em parceria com a SEJUS – Secretaria de Estado de Justiça, tem como filosofia a aplicação das “Regras de Mandela”, regras mínimas da Organização das Nações Unidas (ONU) para o tratamento de presos, as quais o Brasil é signatário desde 22/05/2015. Exemplos:

“Regra 03 – o encarceramento e outras medidas que excluam uma pessoa do convívio com o mundo externo são aflitivas pelo próprio fato de ser retirado destas pessoas o direito à autodeterminação ao serem privadas de sua liberdade. Portanto, o sistema prisional não deverá agravar o sofrimento inerente a tal situação;

“Regra 04 – Os objetivos de uma sentença de encarceramento ou de medida similar restritiva de liberdade são, prioritariamente, de proteger a sociedade contra a criminalidade e de reduzir a reincidência. Tais propósitos só podem ser alcançados se o período de encarceramento for utilizado para assegurar, na medida do possível, a reintegração de tais indivíduos à sociedade após sua soltura, para que possam levar uma vida autossuficiente, com respeito às leis”.

Além disso, a Acuda se orienta pela doutrina humanista ensinada por Jesus Cristo: “ouvistes que foi dito: Olho por olho, e dente por dente. Eu, porém, vos digo que não resistais ao homem mau; mas a qualquer que te bater na face direita, oferece-lhe também a outra;

“Ouvistes que foi dito: Amarás ao teu próximo, e odiarás ao teu inimigo. Eu, porém, vos digo: Amai aos vossos inimigos, e orai pelos que vos perseguem. Pois, se amardes aos que vos amam, que recompensa tereis? não fazem os publicanos também o mesmo? E, se saudardes somente os vossos irmãos, que fazeis demais? não fazem os gentios também o mesmo? Sede vós, pois, perfeitos, como é perfeito o vosso Pai celestial”.

A experiência do uso de Ayahuasca por presidiários e a sua posterior suspensão pelo Poder Judiciário

O Projeto Acuda já era relativamente conhecido no Brasil e no exterior como um bem-sucedido trabalho de ressocialização de presidiários. Porém, o fato surpreendente de se usar Ayahuasca para o desenvolvimento pessoal e reinserção familiar e social do apenado ganhou visibilidade na imprensa nacional e internacional, a destacar a matéria do New York Times, imprensa europeia e, principalmente, o destaque, como reportagem semanal, do Programa Fantástico da TV Globo, de 24/05/2015.

(Ver:

http://g1.globo.com/fantastico/noticia/2015/05/presos-tomam-cha-alucinogeno-em-projeto-social-polemico-em-rondonia.html )

No universo ayahuasqueiro a repercussão da matéria televisiva foi positiva, apesar da espetacularização midiática, que é a tônica de parte da imprensa e de programas de televisão aberta. Entretanto, essa excessiva visibilidade não contribuiu em nada para o bom andamento do Convênio Interinstitucional entre a Acuda e o Lar de Frei Manuel (Barquinha), pois este convênio é obrigado a passar permanentemente pelo crivo do Tribunal de Justiça de Rondônia.

A superexploração midiática gerou resistência dentro do próprio Poder Judiciário de Rondônia, que o havia autorizado. Os diretores da Acuda foram convocados a comparecerem diante de autoridades para explicarem o que estava ocorrendo, apesar de que nada havia sido feito até então sem o conhecimento e a permissão da Justiça.

Alguns meses depois, os presos que eram liberados pelo Juiz da Vara de Execuções Penais, para irem às cerimônias religiosas em Ji-Paraná – Rondônia, foram impedidos pela Justiça. Pela repercussão da reportagem distorcida da TV, a Justiça impediu que os presidiários continuassem envolvidos no promissor projeto da reintegração familiar e social com a utilização de Ayahuasca.

Com essa proibição, o Juiz Titular da Vara de Execuções Penais (VEP), que liberava os presos, solicitou um relatório que apresentasse os depoimentos dos encarcerados, bem como um texto sobre a parte científica da Ayahuasca, a fim de que pudesse anexar no processo, que estava transitando no Tribunal de Justiça, sobre a questão do uso do Daime para presidiários.

Diante dessa convocatória, a psicóloga da Acuda e Professora Doutora do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Rondônia, Maria Hercília Rodrigues Junqueira, coordenou uma Pesquisa de Campo, colhendo depoimentos de 13 encarcerados que tomaram o Daime (Ayahuasca) na Igreja da Barquinha em Ji-Paraná – Rondônia, e realizou a análise desses depoimentos.

No documento entregue ao Poder judiciário, a Profa. Hercília considera que a percepção dos próprios detentos, a respeito da Ayahuasca, o que eles vivenciaram e sentiram, se torna mais importante do que qualquer outra forma de falar sobre a experiência.

O relatório contendo as informações solicitadas foi entregue em outubro de 2015, e as instituições envolvidas no Projeto de uso da Ayahuasca para ressocialização de presidiários, ainda aguardam o posicionamento das autoridades judiciais.

Todavia, os diretores da ONG Acuda não esmoreceram, apesar das dificuldades e demora de posicionamento. Determinados que são em busca do alcance de seus objetivos, foi adquirida uma chácara na zona rural de Porto Velho – Rondônia, batizada de ‘Rancho Divina Luz’, onde está sendo construída a ‘Casa de Passagem Lar de Jesus e de Frei Manuel’, para amparar dependentes químicos, pessoas em situação de rua e ex-presidiários.

Com orientação de Edilsom Fernandes, presidente da Barquinha de Ji-Paraná, nestas terras desenvolvem um plantio de folha Rainha/Chacrona e Cipó Jagube/Mariri, vegetais que produzem a Ayahuasca, para futuras ações religiosas e terapêuticas com a regeneradora bebida, e dessa maneira conquistarem sustentabilidade.

Ayahuasca, autoconhecimento e desenvolvimento pessoal

Um dos principais e surpreendentes efeitos do uso da Ayahuasca é o Estado de Expansão da Consciência (AEC). O Estado de Expansão da Consciência proporcionado pela Ayahuasca é a experiência em que o indivíduo tem a impressão de que o funcionamento habitual de sua consciência se modifica e que ele vive uma outra relação com o mundo, consigo mesmo, com seu corpo, com sua identidade.

O efeito dessa beberagem pode ser definido como uma alteração qualitativa no padrão comum de funcionamento mental em que o experimentador sente que sua consciência está radicalmente diferente de seu funcionamento “normal”.

A Resolução do Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas, de 2010 — Conad 01/2010 — regulamentou o uso da Ayahuasca para fins religiosos. Porém, em relação ao seu uso terapêutico é pouco clara: afirma que a utilização terapêutica da Ayahuasca deve ser vedada, até que se comprove sua eficiência por meio de pesquisas realizadas por centros de pesquisas vinculados a instituições acadêmicas, obedecendo às metodologias científicas.

E mais adiante, nas recomendações, a Resolução sugere que devem-se fomentar pesquisas cientificas abrangendo as áreas de: farmacologia, bioquímica, clínica, psicologia, antropologia e sociologia, incentivando a multidisciplinaridade.

Tudo isso abre espaço para o uso terapêutico da Ayahuasca no combate à drogadicção e o alcoolismo, por exemplo. Apesar do uso terapêutico da Ayahuasca não estar regulamentado, também não parece haver proibição ou disposição das instituições governamentais de interferir em tais práticas.

Daí que ganhou notoriedade a experiência em Ji-Paraná – Rondônia, de terapia com Ayahuasca para reintegração social de detentos. Todavia, cabe assinalar que o uso de Ayahuasca resultante do Convênio entre a Acuda e a Barquinha ocorria em cerimônias religiosas. O caráter das cerimônias era, antes de tudo, religioso.

Já a metodologia de trabalho da ONG Acuda é de utilizar terapias alternativas para tratamentos físicos, psíquicos e emocionais com objetivos de ressocialização dos presidiários — como foi explicitado acima — e estas técnicas e práticas são associadas a paradigmas filosóficos ou psicológicos que visam o “autoconhecimento”.

O psiquiatra chileno Claudio Naranjo, inspirador filosófico da Acuda, considera a bebida enteogênica Ayahuasca como agente de mudanças, e a compara a outras práticas espirituais existentes:

“Nossa análise das diversas facetas da experiência com Ayahuasca tem demonstrado um núcleo vivencial que cabe descrever como semelhante ao da meditação, tanto nas tradições orientais como na yoga, no budismo e no taoísmo como na mística cristã: a paz, o silêncio, a quietude, a falta de pressa e a confiança de entregar-se a um profundo repouso, levam a um estado mental que alguns descrevem como um nada profundamente satisfatório”.

Para Naranjo, a ‘paz de espírito’ proveniente do uso da Ayahuasca leva ao desenvolvimento da satisfação de viver o presente, o entusiasmo espontâneo, sensibilidade musical, o entendimento do que se passa com os outros (desenvolvimento da empatia), do que se passa com sua própria vida, melhor compreensão de seu modo de ser e agir e, muito importante, o contato com o sagrado.

Os dirigentes da Acuda, sabedores das limitações legais para o uso terapêutico da Ayahuasca, assim como a consciência e confiança de que um trabalho de parceria só poderia ser feito junto com uma instituição religiosa ayahuasqueira, procurou a Barquinha e, encontrando receptividade, desenvolveu esta rica experiência, da qual, através do depoimento dos presidiários que voluntariamente usaram da bebida, podemos ter uma percepção e compreensão desta interessante vivência.

Falam os presidiários sobre o efeito da Ayahuasca em suas vidas

Chamou bastante a atenção esse depoimento, a seguir, de um presidiário, vinculado em documentários de canais de TV europeias, sobre a experiência de uso de Ayahuasca:

Sob efeito do Daime (Ayahuasca), durante a sessão, um presidiário condenado por homicídio teve uma visão onde se viu atirando e matando uma pessoa, ao mesmo tempo ele era a própria vítima. Sentia as fortes dores que a vítima sentia. Uma voz lhe perguntou:

— Qual a pior dor do mundo?

— Cólica dos rins, respondeu.

— Não. É a dor da morte. Você lembra daquele homem que você atirou e deixou agonizando, para morrer?

O prisioneiro sentiu na própria pele as dores da família da vítima e de sua família, da mãe da pessoa assassinada e da sua própria mãe. Ficou amargamente arrependido, jurou e prometeu não mais cometer crime.

Hoje este apenado está no regime semiaberto, trabalhando e lutando contra o grande estigma social que carrega, o que dificulta a sua plena ressocialização.

Agora, os depoimentos coletados pela equipe da Profa. Hercília, em Trabalho de Campo.

Depoimento do presidiário n.1:

“Logo no começo nem acreditava no Daime. Mas o Daime me mostrou todos os crimes que eu cometi e as consequências deles. Numa sessão senti a dor da morte. Senti toda a sua dor. Não tinha como sair. O Daime me mostrou o quanto fiz as pessoas sofrerem e que existe a dor da morte.

“Durante as sessões do Daime via em minha frente a pessoa que eu matei. De olhos fechados eu via ela direitinho diante de mim. Ela me perguntava:

“ — Porque você me matou?

“Eu procurava a resposta e não encontrava. Ficava agoniado e não encontrava logo a resposta. O Daime não deixa a gente mentir, então eu ficava um tempão buscando a resposta. Eu voltava para o dia do acontecimento, o dia do crime, e eu tinha que falar o motivo.

(…) “Fiz homicídio para ganhar dinheiro. Numa das sessões vi que, assim que eu ganhava dinheiro, corria para o bar e gastava tudo. O Daime mostrou que não era cerveja, mas sangue da vítima que eu estava bebendo. Fiquei sufocado durante toda a sessão. Tinha a sensação de que eu iria cair no chão e, se isso acontecesse, iria ficar envergonhado e não viria mais. Pedi muito para não cair e passar vergonha.

“Fiquei prometendo que não iria matar mais ninguém e então não cai no chão. E eu estava sufocado e o Daime disse que esse sufoco era o sufoco das pessoas a quem fiz mal.

“O Daime me mostrou o sentido da minha morte para a minha família e amigos: eu me vi num caixão, no alto, quando escutei choro dos meus familiares, inclusive minhas ex-mulheres e sogras. Conseguia sentir a dor deles pela minha morte. Senti o quanto me amavam e chamavam por mim.

“O Daime me mostrou então, que essa dor que eu estava sentindo era a mesma dor da família de quem eu tirei a vida. Jurei então que não ia matar mais.

“Sei que não posso voltar atrás com o que fiz. Posso fazer de outro jeito depois que conheci o Daime”.

Depoimento do presidiário n.2:

“Até as vítimas eu vi, no Daime, no Dia das Mães (cerimônia comemorativa do Dia das Mães). Nós fomos para lá, eu tomei o Daime e vi todas as mães chorando, dos crimes que eu pratiquei. E eu procurava minha mãe também ali, e eu não encontrei minha mãe e eu chorava muito dentro do Daime.

“Eu fui em busca de ver a minha mãe, só que o Daime mostrou o outro lado, mostrou as outras mães dos assaltos, dos crimes que pratiquei com as vítimas. Eu sei que depois do ato que a gente pratica, do roubo ou de qualquer outro crime, fica uma marca na pessoa, até aquilo apagar… e eu vi.

“A minha condena é de 56 anos e 4 meses, (depois disso) eu não pratiquei mais crimes, só cumpri pena, porque a minha condena era alta. Destes 56 anos, eu já estou dentro dos 28 anos pagos dentro de cela, nem em semiaberto. Eu sei que eu errei e eu tenho que pagar…

“O Daime não vai mudar ninguém, a Acuda não vai mudar ninguém, mas ela dá uma opção de escolha, a gente muda se quiser”.

Depoimento do presidiário n.3:

“O Chá mostrou minha vida toda, do começo que eu saí de casa aos 13 anos. Minha vida toda foi trabalhar, eu saí com raiva do meu pai, por causa de uma ‘pisa’ que meu pai me deu. Não era pra eu ter feito aquilo. Hoje em dia eu penso melhor, porque eu vejo em meus filhos, minhas filhas, minha mãe.

“Então eu quero recolher o que eu fiz para trás, o mal que eu fiz para a minha família. A minha mãe, que sofreu muito, meu pai, porque o que ele fez comigo era para o meu bem e não por mal. O Daime mostrou tudo aquilo para mim. Hoje em dia eu trato minha família com maior carinho e maior amor, dou atenção para eles.

“Então, é isso. Eu pequei demais na minha vida, no passado, e o presente tem de ser diferente, se eu levar igual todo mundo vou ter uma vida melhor. Tô tentando mudar, tentando não, eu tô mudando aos poucos. Graças a Deus tudo está acontecendo bem com a minha mãe, com minha família, com meus filhos. Então, graças a Deus, desde que eu caí preso, a minha família nunca me largou, meus filhos nunca me largou. Meus filhos gostam de mim e minha família também. Meus filhos me tratam com maior carinho, vêm aqui a cada 15 dias, eles vêm de bicicleta, lá no (Presídio) Marcos Freire.

“A minha mãe já viu muita mudança de mim e minha família também. Eles perguntam:

“— O que está acontecendo contigo mesmo, negão?

“Aí eu falei:

— Nada. Não está acontecendo nada.

“Sempre sorrindo com eles, graças a Deus. Tô me libertando mais, que eu era um cara que não sorria pra ninguém, hoje em dia eu na cadeia sou mais brincalhão. Minha mãe desconfia que eu mudei muito. Graças a Deus tudo está de boa pra mim. Se eu pudesse estar toda vez lá, no Chá, eu tava… Mudou muito o pensamento, o jeito da gente conversar com as pessoas, eu era uma pessoa trancada.

(…) “A experiência mais difícil que eu tive foi quando mataram meu irmão. Eu ia sair daqui, ia matar o cara. O coitado do meu irmão estava no trabalho. Além de roubar, eles ainda mataram ele.

“Uma experiência que o Daime mostrou: eliminar o mal. Eu não gosto de contar isso daí, mas eu vou contar que é pra ajudar. Eu tava com aquela sede de vingança, de matar o cara e, na hora que eu tomei o chá, aí eu vi o cara e ele disse:

“— Eu falei que você não tava preparado pra ir pra fora. Aconteceu o que aconteceu com a sua família, com teu irmão e você tá pedindo vingança. Do que adianta então? Você viu o que aconteceu com seu pai. Agora, você cobrando vingança de novo! Agora só falta sua mãe.

“Eu falei pra ele:

“— Minha mãe não! Tudo que eu tenho é ela e você quer que os outros matem a minha mãe e eu fique de braços cruzados?

“ — Mas é por isso que eu tô te amostrando. Não tá bom não, tudo que ela sofre com você? Não… você não vê isso? Você faz uma coisa dessa aí, você não tem dó de ninguém, você está fazendo sua família sofrer. Mas a sua mãe… Você acha que você mudou? Você não mudou nada! Você não se libertou de nada!”

“Então, eu comecei a chorar. Aí ele disse:

“— Sua filha vem sofrendo por causa de você, já tem 5 anos preso, teus filhos precisando de você aqui fora e você quer sair pra fora e fazer vingança? Você cria vergonha na sua cara! Segue sua vida pra frente! Você tem que se mudar você mesmo!

(…) “Um dia desses, minha filha veio aqui. Ela e a prima dela, dizendo:

“ — Pai, eu sei que você não fez nada. Eu sei que você não deve nada. Você paga essa sua cadeia, para com essa sua raiva. Isso nunca vai te levar pra frente, isso atrasa sua vida, você vai querer que seu filho vire ‘noiado’ (drogadicto)? Vai querer que sua filha vire vagabunda?

“Eu fiquei olhando pra cara dela, fiquei olhando pra minha filha, de 13 anos, me dando conselho. Quando eu quis ficar bravo com ela eu pensei: ‘não! Ela tá certa! É uma criança, mas está certa! Eu sair daqui vou fazer coisa pior e eu vou largar meus filhos na mão de novo, sofrendo na rua! Não vou fazer isso não!’

(…) “A experiência que eu tive (com o Daime) foi boa pra mim. Aquele ódio, aquela raiva… mudou tudo… me sinto outra pessoa. Todo mundo reconhece que eu mudei demais. Com Daime eu cresci. Cresci bastante e as pessoas que estão aqui (na Acuda e na Barquinha) me ajudaram bastante também.

“Hoje em dia eu tô penando aqui dentro, mas o Daime tá me ajudando, me ajudou bastante”.

Depoimento do presidiário n.4:

“Quando meu filho faleceu, eu não pude ir (no enterro). Durante a sessão (Cerimônia de Daime) eu pude ver ele no mesmo momento em que eu vi ele pela última vez, no hospital. Na segunda vez que eu tomei o chá, eu encontrei com ele de novo, tive uma visão com ele de novo. Na mesma situação em que ele se encontrava, na maca do hospital. Me despedi dele.

“O que mudou na minha vida foi a minha arrogância, meu jeito de tratar as pessoas, totalmente diferente, minha visão totalmente diferente, de que somos iguais, ninguém é mais que a outra pessoa.

“O Chá mostra para você o amor, a humildade, você ser humilde com o próximo, independente do quê, da onde, cor, raça, idade. Preconceito, isso não existe. Existe o amor. Ele mostra o bem, ele só te traz o bem. Para você entender o que é o bem.

“Então isso para mim é humildade, a humildade é o elo de tudo e assim se torna amor”.

Depoimento do presidiário n.5:

“Nas primeiras vezes não queria voltar (na Cerimônia) porque eu estava com problemas com um dos colegas, sentia ódio por ele. E, numa noite dormindo, ouvi uma voz que dizia para eu voltar para o Daime. Fui, mas não queria tomar. Fiquei trabalhando muito no mutirão para não tomar (mutirão de limpeza da Chácara, da hospedaria e organização da Cerimônia).

“E durante a sessão resolvi e tomei o Daime. Então, vi um negão, maior do que eu, que disse que eu tinha que pedir perdão para o companheiro que eu tinha ódio. Eu não queria pedir desculpas, e quase chegando ao final da sessão, o negão dizia para mim:

“ — Você não vai pedir perdão? A sessão já está acabando! Você não vai?

“Quase chegando ao término, criei coragem, levantei e pedi permissão ao Dirigente (da sessão) e pedi perdão na frente de todo mundo. Depois disso, tudo começou a melhorar para mim.

“E hoje eu não tenho nada, nenhum pensamento ruim, hoje sou um homem muito tranquilo, feliz. Eu não tinha alegria comigo, hoje eu não consigo ficar triste. Tipo assim, tinha hora que eu falava assim: ‘Não quero falar, eu não quero sorrir!’, mas acabou. Eu estou com 65 anos e parece que eu sou um jovem de 16-17 anos, eu me sinto assim. Eu não sinto nada ruim para mim, tanto que eu me sinto bem, me sinto feliz.

“Aquela raiva que eu tinha, eu tinha um ódio dentro de mim assim que, Deus me perdoe. Eu chorava, tinha vezes que eu levantava de noite, eu ia para o banheiro, eu chorava.

“Graças à Deus, me sinto um homem curado pelas medicinas do Santo Daime”.

Depoimento do presidiário n.6:

“As visões que eu tive, algo muito concreto. Após ter tomado o Daime eu fechei meus olhos e começou a vir coisas na minha visão, eu comecei a ver coisas.

“Uma das primeiras coisas que eu vi, foi que eu vi literalmente a minha esposa sentada no sofá e aí eu entrei naquele ambiente, e eu vi ali, em questão de segundos, todo mal que eu causei à minha esposa, assim com relação a desprezo e, às vezes, infidelidade, e de uma hora para outra eu pude sentir arrependimento. Dentro da minha mente, eu vi uma reviravolta muito grande, e eu vi aquela visão, foi uma visão do que já tinha acontecido comigo.

“Eu já tinha visto aquela situação, ela naquela situação, chorando, e na minha mente, era como se uma voz dizia para mim: ‘você sabe porque ela está chorando?’ Na minha consciência eu dizia assim: ‘Eu sei o porquê’. E aí vinha na minha mente assim: ‘o que você tem que falar para ela?’ Aí eu dizia: ‘só me resta pedir desculpa, perdão a ela’. E vinha: ‘então faça’.

“Aí eu sentava e começava a conversar com ela, na visão, mas era no mesmo lugar, era no mesmo sofá, na mesma sala, era no mesmo ambiente que eu vivi. Foi no mesmo ambiente que eu vivi no passado, que eu me deparei com aquela situação ali e eu tive que me retratar tudo ali, a minha vida ali em questão de segundos.

“Quando acabou aquela sessão, eu fiquei com aquele arrependimento mesmo, ficou aquele ressentimento de culpa, que não era suficiente ali aquela visão que eu tinha visto, que tinha algo mais para mim fazer. Então eu, quando ela veio me visitar, eu procurei ela, conversei com ela da minha experiência, o que eu tinha vivido.

“E um pouco do que eu vi lá atrás nessa visão, só voltando um pouco essa visão, eu me vi quando eu era criança. É como se fosse um filme que passou na minha mente, todinho: o que eu passei com meu pai, com minha mãe, o que meu pai fez com a minha mãe….

“Foi questão de minuto, a minha vida passou diante de meus olhos. E aí depois eu pude entender o porquê de tanto ressentimento, o porquê de tanta raiva, o porquê de tanto ódio, o porquê de tanta revolta, eu pude entender tudo isso aí.

“Fazia mais de dois anos que não falava com meu pai, não via meu pai. Pedi que meu pai viesse aqui (no presídio), depois disso, conversei com ele aqui e pude me retratar com meu pai, pude conversar, pude pedir perdão a ele, e ele chegou até chorar, porque a gente nunca teve esse contato assim muito….

“Eu era também uma pessoa muito fechada em relação a filhos (eu tenho quatro filhos), e a minha relação era muito fechada, era muito, sei lá…. Faltava alguma coisa assim para completar com relação a ser pai.

“E com meus filhos também, eu senti que… Eu via naquela visão, os meus filhos, tipo assim, eles olhavam para mim e havia uma necessidade. Parece de que eles pediam, no olhar, mais carinho, mais amor, mais dedicação, mais compreensão. E depois disso tudo eu comecei me retratar, me retratar com minha família, com tudinho, comecei a caminhar por outro caminho que eu não via, eu não tinha essa visão.

“E para mim foi muito bom porque, com relação à família, eu consegui me retratar com a minha família tudinho e hoje está muito tranquilo. Hoje eu sou muito tranquilo com a minha família, e coisas que a gente não viveu, quando eu estava lá fora, em liberdade, coisas que a gente não viveu em vinte e seis anos, a gente pôde viver nesses últimos dois anos. Então, para mim foi muito bom, foi muito bom mesmo. E, com relação à família, esse foi o primeiro tratamento.

“E eu nunca fui muito de olhar para o semelhante, eu nunca fui muito de ter dó do semelhante. Não sei se porque a vida que vivi e fui muito desprezado por pai. Meu pai largou minha mãe muito cedinho quando eu tinha sete anos de idade. Então, a gente teve uma vida muito atribulada, muita necessidade, de muita luta. E aí eu não tinha muito sentimento assim, meu ar de misericórdia pelo ser humano era muito pouco.

“E hoje não, hoje, depois de toda essa experiência que eu tive com a minha família, com meu pai (reconciliamos), com a minha esposa, que eu tive o prazer de pedir perdão a ela, e ela aceitou e reconheceu também os erros dela, meu tratamento com os meus filhos…. Hoje eu observei em todo mundo já está cem por cento, os meus filhos… Os meus netos estão me visitando (tenho dois netos).

“Eu sinto que há uma necessidade de eu retornar lá, continuar aquilo que foi começado a trabalhar em mim (nas Cerimônias de Daime). No meu interior, na minha mente, eu acho que parar agora é um prejuízo muito grande pra mim e até mesmo pra sociedade. Eu acho que é um prejuízo muito grande parar agora, interromper esse tratamento agora”.

Depoimento do presidiário n.7:

“Quando tomei o Daime tive uma experiência espiritual muito grande: ampliou minha consciência. Eu era muito ignorante e durante as sessões pude ver tudo o que fiz, especialmente os maus tratos verbais com as pessoas. O Daime me trouxe mais humildade, paz, tranquilidade, compreensão, entusiasmo e motivação para o trabalho.

“Levei muitas bordoadas durante as sessões, pois vi os meus erros e percebi que fiz coisas piores do que um crime: tinha poder e com isso humilhava as pessoas. Vi que tenho um espírito doente: orgulho, vaidade, prepotência e arrogância.

“Na Barquinha me senti de novo na sociedade pelo tratamento das pessoas de lá: sem preconceito, sem desprezo e sendo recebido com abraços. Isso não tem preço. Fui aceito sem estigma. Quando vou para a Barquinha me sinto valorizado. Lá na Barquinha, não sou visto como lixo.

“Depois que comecei a tomar o Daime passei a viver melhor com a minha família e com as pessoas à minha volta. Saí do fundo do poço. Quero continuar a tomar o Daime”.

Depoimento do presidiário n.8:

“Tenho 30 anos, estou há 5 anos preso. A minha experiência com o Chá mudou a minha vida, não só o Chá, mas como todo o trabalho da Acuda. O Chá tem me fortalecido bastante.

“O Chá me ensinou a ser uma pessoa mais humilde, tirou um pouco da minha arrogância e tem muita coisa no Chá que a gente passa, a gente vê e é difícil de explicar. O que eu sei dizer é que o Chá faz um sentido muito grande para minha vida, pelo meu preconceito de entender o outro, entender o próximo, ajudar o próximo também.

“O Chá tem me mostrado esse caminho que eu devo andar certo, tem clareado um pouco a minha mente sobre as coisas certas, as coisas erradas… tem me trazido bem presente para o momento do aqui agora, para o momento que eu tenho aqui, viver a vida, levar para frente, me trouxe para ser mais… acredito que procurar um meio de experiência melhor pra vida .

“Na minha experiência com o Chá vi muitas coisas que me fez mudar. São coisas que fiz, que eu vi, questão de… eu não tenho como explicar… Vontade de ser uma pessoa melhor, fazer a coisa mais certa, de pensar mais nas coisas certas”.

Depoimento do presidiário n.9:

“O Daime me mostrou com firmeza o que era o amor pelas pessoas. Eu não sabia o que era isso. Hoje mudei muito com relação ao amor. Hoje sinto amor pelas pessoas. Me mostrou as coisas erradas que eu fiz, mostrou tudo o que fiz de errado. Mostrou quem sou, o que fiz, a mim e a minha família. Com relação aos crimes tudo me foi mostrado: a vaidade, a usura pelo poder e pelo dinheiro. Fiquei muito arrependido.

“Eu tinha conhecimento do trabalho da Acuda, que muito me ajudou, mas o Daime aprofundou o meu conhecimento, pois abriu um leque para mim.

“Depois que passei a tomar o Daime tenho recebido muitas orientações em sonhos. É como uma visão do que deve ser feito, o caminho para fazer as coisas. Hoje só penso em fazer o bem e falo quando as pessoas estão indo no caminho errado. Antigamente achava que a pessoa tinha que quebrar a cara para poder aprender.

“Os antigos companheiros estão se afastando achando que estou louco. Eles falam coisas que já não me interessa mais, e com muita falta de respeito. Hoje só converso com aqueles que estão no caminho da luz.

“Percebi durante uma sessão a morte do meu filho de 16 anos e entendi o motivo da precocidade de sua morte, pois estava sem entender. Vi também o enfarte de meu pai e vi a doença de minha mãe. Hoje estão bem e esperando por mim, para receberem o meu abraço.

“Hoje tenho que cuidar do que penso para continuar no caminho do bem”.

Depoimento do presidiário n.10:

“A minha experiência com o Daime foi legal. A primeira vez me deu um medo danado, mas o Daime me mostrou novas formas de ver as coisas, mostrou o que eu fazia de errado.

“E no dia que eu tomei, eu me sentei e parecia que amarraram minhas pernas e me deram uma surra, porque eu comecei a pensar sobre as coisas que eu fiz de errado, as loucuras do passado, ambição e eu não quero mais aquele passado.

“O Chá mostrou meus erros do passado e fortaleceu mais com relação a minha família, aproximou mais. A relação com minhas filhas é a mesma, o amor é o mesmo. Minhas filhas e minha mãe são tudo para mim. Minhas filhas sabem que tomo Chá e as duas são evangélicas.

“Depois do Daime a minha relação com a família melhorou, porque antes eu era mais próximo da minha mãe e avó, e hoje a minha família está toda comigo. Me perguntam como era o Daime, se era droga ou macumba. E eu falei que não, um Chá normal.

“O Daime me fortaleceu mais para trabalhar honestamente, eu sempre gostei de trabalhar”.

Depoimento do presidiário n.11:

“Da primeira vez que experimentei o Daime foi por curiosidade e não gostei. Mas no momento eu precisava de algo para minha vida, fui para conhecer mesmo. Como a primeira experiência não foi boa falei que não ia mais.

“Depois teve outra sessão e fui novamente para ter outra experiência esperando ser melhor que a anterior. Daí então, eu não parei mais, vi que começou a me ajudar em muitas coisas da minha vida.

“Muitas pessoas julgam muito quem toma o Daime, falam que não é coisa de Deus, que é do demônio e eu, como evangélico, tive como ver que não tem nada a ver. O que eu digo é minha experiência com o Daime, porque lá, onde tomo o Chá (a Barquinha), é um pouco puxado para religião católica, mas tem evangélicos também, todos se respeitando.

“A partir do momento que eu conheci o Daime posso dizer que ele ajuda, mas não assim que vai mudar. Se você não querer, não vai mudar. Mas assim, ele abre o subconsciente, o que tem guardado e mostra muitas coisas, mas sua prática é no dia a dia.

“Eu tive muitas experiências com relação à minha família, a melhorar minha relação com minha irmã, porque não me entendia com ela e hoje consigo entender. Somos três irmãos e hoje sou uma pessoa que ela compartilha muito a vida dela porque tem essa confiança, mesmo eu estando preso.

“A minha forma de enxergar e agir em determinadas situações, depois que tomei o Daime, mudou muito. O autocontrole, eu não tinha, era nervoso, explosivo e o Daime mostrou muitas coisas que estava errado e a como saber lidar com isso no dia a dia. Hoje consigo me controlar um pouco mais em relação a isso. Mas como eu falei, isso é da minha parte, eu querendo. Se eu não quiser não tem como também.

“O Daime foi o ponto forte, porque querendo ou não, tudo envolve, porque se não fosse algo para estar me ajudando eu já estaria entrando em depressão ou em alguma coisa do tipo.

“Porque na realidade, quando eu estava lá no Sistema fechado eu estava para entrar em depressão. Já não comia mais. Quando eu vim (…) na Acuda eu conheci o Daime e foi justamente na época em que eu estava separando.

“Tive bastante ajuda em relação a isso. O Daime mostrou coisas bastante fortes. Coisa que eu vi e me disseram que tinha que ver mesmo, senão eu não ia ter o crescimento. Eu falava que não queria, mas não, ele tem que mostrar para você assim, tipo: ‘Você tem que encarar a realidade o mundo hoje, já não é mais um mundo de fantasia, é pura realidade, você tem que viver a realidade’.

“Porque o que você encontra no dia a dia são as barreiras, os obstáculos, mas a gente tem que saber lidar com esse tipo de situação. Não que o Daime é o deus, o maior, mais é uma autoajuda: envolve um pouco da terapia e também ajuda a ampliar nossa mente.

“Porque a gente no Sistema (Carcerário) só pensa 24 horas em maquinar o mal e através do Daime comecei a ver outras possibilidades. Gostaria que os outros tivessem essa mesma oportunidade. Eu creio que mudariam bastante a forma de pensar.

“Eu creio que muitos vêm aqui do Sistema e não tem oportunidade de conhecer algo diferente. Porque ele vem para o Sistema, ele entra em uma religião ou igreja e, quando ele sai, percebe que foi só o momento, só um refúgio para aquele momento.

“Mas no Daime não. Porque no Daime, mesmo você saindo do Sistema, você tem oportunidade de ir até o local da sessão, em Ji-Paraná, e lá você tem o padrinho Fernando (Edilsom Fernandes), que abre as portas para quando você sair.

“É…. o Daime é muito diferente. Querendo ou não ele fica. Fica como uma experiência que você jamais irá esquecer, uma lição de vida. Muitas experiências na minha vida particular com o Daime, são muitas mesmo….

“No Daime é falando em Deus todo tempo, são cinco horas de sessão, então, quando termina, se você teve alguma dificuldade ou alguma experiência também, que você não consegue interpretar ela, você chama o Fernando (Edilsom Fernandes),  que é o mestre e compartilha com ele e ali ele vai te ajudar. E tudo faz muito sentido quando o mestre orienta, principalmente em relação a eu estar preso.

“Eu, quando estava lá fora, uma pessoa de boa índole, tinha meu carro, minha casa, minha vida estabilizada e, quando vim parar no Sistema, com o fato do Art. 217, corrupção de menor, e até nisso o Daime me ajudou bastante, porque eu não fico mais me justificando, e mostrando meu processo para ninguém.

“O mestre falou que, em relação a esse crime que estou preso, isso eu não cometi, mas, e os que ficaram para trás? Não que eu tenha roubado ou matado, mas assim: você está casado com uma pessoa e pede para ela abortar um filho. Isso, querendo ou não, é uma coisa muito ruim: você matou ali. E foi o que o mestre falou: o que você fez lá atrás e está pagando por isso tudo.

“Então, como uma pessoa evangélica eu não queria abrir minha mente para isso, mas eu na minha cama, comecei a pensar: ‘realmente, tudo que a gente faz, tudo tem consequência’ e a gente acha que tudo já foi esquecido. Mas não, sempre vem. Antes eu entrava no Sistema para evangelizar, fazer teatro e eu era muito preconceituoso porque quando eu estava na rua, roubaram minha moto e eu tinha muita raiva de ladrão. Então, passava na televisão que eles estavam fazendo rebelião por alimento, e eu falava: ‘esses caras têm que morrer’. Eu falava desse jeito.

“Mesmo indo no Sistema fazer teatro eu falava que eles tinham que morrer, não precisavam de mais nada. Eu tinha esse preconceito. E hoje eu estou onde? No Sistema.

“Além do Daime, tem a terapia, o reiki, a meditação e tudo está ótimo. Mas com o Daime, com certeza, é uma ajuda maior ainda, porque eu tiro o Daime pela Acuda: a Acuda ela te dá a vara e o anzol. E a isca? Você tem que pescar.

“A mesma coisa é o Daime: ele mostra os caminhos, mas você é quem escolhe. Ele mostra tudo, falo tudo porque ele te mostra as coisas que você não quer ver, mas você tem que ver.

“Você tem que cair na realidade, não tem como você correr, são dia a dia as dificuldades. Você tem que ultrapassar as barreiras, para você se tornar com certeza mais forte e saber lidar com o dia a dia para quando você sair e isso é muito importante aqui e lá fora. Saber lidar com as situações.

“Minha mãe dizia para eu não tomar o Daime, e uma parte interessante, é que eu me encontrava em um estado em que eu… tipo uma depressão. O Daime para mim foi um refúgio, um alívio. Até comentei isso com minha mãe. Até porque, na minha família, eu fui levando todos para Igreja e hoje, como exemplo, eu tive que contar para minha mãe, porque o Daime tem me ajudado. O local onde eu me encontro no Sistema, a Acuda, ele tem me ajudado bastante.

“E eu conversei com meu irmão, porque ele é Presbítero na Igreja e ele não aprovou eu tomar Daime. Eu expliquei que não: ‘Você tem o conhecimento da palavra eu também, e você sabe o caminho que trilhar, e esse foi o meu’.

“Ele perguntou se eu deixei de ser evangélico, eu disse não. Continuo buscando Deus, estudando a Bíblia, querendo saber cada vez mais. Só que agora tenho o Daime, uma nova experiência que vou levar adiante. Quando sair do Sistema também”.

Considerações finais

Como dissemos no início desta comunicação, uma profícua experiência foi desenvolvida com o uso de Ayahuasca, entre os anos de 2012 e 2016, através de um convênio entre a ONG Acuda e a instituição religiosa ayahuasqueira Lar de Frei Manuel (Barquinha de Ji-Paraná – Rondônia).

No texto, discorremos sobre a condição do presidiário e o sistema penitenciário brasileiro; a saúde mental dos presidiários e a experiência do uso de Ayahuasca para o autoconhecimento e desenvolvimento pessoal — assim como para a reabilitação e ressocialização de apenados e egressos do sistema carcerário.

Essa rica e importante experiência foi, posteriormente, suspensa pelo Poder Judiciário do Estado de Rondônia. Todavia, a regeneradora vivência experenciada permaneceu vívida nos corações e mentes dos que a experenciaram, e eles nos relataram, de maneira profunda e honesta, os benefícios adquiridos com esta “bebida de poder inacreditável”.

A percepção dos próprios detentos a respeito da Ayahuasca, o que eles vivenciaram e sentiram, as transformações morais e éticas que passaram, são mais importantes do que qualquer outra forma de falar sobre a experiência.

Assim, está feito o registro, como contribuição para uma futura retomada do Projeto de Uso de Ayahuasca para Reabilitação de Presidiários, e o exemplo e modelo desta experiência para o Sistema Penitenciário Brasileiro e outras instituições ayahuasqueiras brasileiras que se sentirem sensibilizadas.

Vídeo Acuda. Uma trajetória:

 

 

 

 

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Sobre Juarez Duarte Bomfim 726 artigos
Baiano de Salvador, Juarez Duarte Bomfim é sociólogo e mestre em Administração pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), doutor em Geografia Humana pela Universidade de Salamanca, Espanha; e professor da Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS). Tem trabalhos publicados no campo da Sociologia, Ciência Política, Teoria das Organizações e Geografia Humana. Diversas outras publicações também sobre religiosidade e espiritualidade. Suas aventuras poético-literárias são divulgadas no Blog abrigado no Jornal Grande Bahia. E-mail para contato: juarezbomfim@uol.com.br.