A suposta tentativa de criminalizar juízes, procuradores e promotores na condução de seu trabalho investigativo marcou a abertura da sessão de debates no Plenário do Senado, nesta quinta-feira (01/12/2016), sobre o projeto de lei (PLS 280/2016), de autoria do presidente do Senado Renan Calheiros (PMDB-AL), que atualiza a Lei de Abuso de Autoridade (Lei nº 4.898/1965). O senador Lindbergh Farias (PT-RJ) e o juiz federal Sérgio Moro, responsável pela Operação Lava Jato, presente no debate, divergiram sobre a questão.
— Quero deixar claro que ninguém está acima da lei. Queremos investigações amplas, mas dentro da lei. Nos preocupa o uso abusivo da prisão preventiva, da condução coercitiva e da interceptação telefônica — declarou Lindbergh, avaliando que, nos casos da condução coercitiva e de gravações de conversas telefônicas do ex-presidente Lula no âmbito da Lava Jato, houve desrespeito à lei.
Moro, por sua vez, se disse convencido de que o objetivo do PLS 280/2016 é a “criminalização de autoridades”.
— Subjaz a intenção de que o projeto seja usado para criminalizar a conduta [da autoridade]. Isso ficou claro no discurso do senador [Lindbergh]. Se for, insisto na necessidade de adiamento [da votação] e na colocação de normas de salvaguarda para o juiz — ponderou Moro.
O juiz federal Sílvio Rocha discordou de Moro, lembrando que a possibilidade de criminalização de autoridades já existe no ordenamento jurídico.
Rocha também afirmou que o Congresso não pode perder “uma oportunidade excelente de colocar o tema em pauta e proteger a população empobrecida, que sofre violação pelas diversas autoridades que exercem funções públicas nesse país.”
Fim da urgência
Ao se manifestar sobre o PLS 280/2016, o senador Alvaro Dias (PV-PR) fez um apelo pela retirada do regime de urgência para votação da proposta no Senado.
— O que a população deseja, nesse momento, é a conclusão da Lava Jato com eficiência e competência. Não creio que a proposta vá comprometer a Lava Jato, mas uma ação atropelada pode, sim, passar a ideia de que estamos tentando comprometer esse trabalho — alertou Alvaro.
Já o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Gilmar Mendes acredita que não é possível definir um melhor momento para sua votação.
— A todo momento, se vota [o Legislativo] o aumento de pena ou tipificação de delito como crime hediondo como lei-resposta à situação do momento. O assunto aqui a se tratar é de um catálogo renovando o tema de abuso de autoridade — observou Mendes.
O ministro do STF reconhece a necessidade de aperfeiçoamento do PLS 280/2016, que tem o senador Roberto Requião (PMDB-PR) como relator, mas discordou do senador Lasier Martins (PDT-RS) quanto a adiar sua votação para o final da Lava Jato. Mendes também contestou o senador gaúcho quanto a uma eventual lentidão do STF no encaminhamento dos inquéritos ligados à operação.
Atualização da Lei de Abuso de Autoridade abrange os três Poderes, defende Renan
O presidente do Senado, Renan Calheiros, afirmou que a proposta não visa cercear atividades, mas apenas proteger direitos fundamentais dos cidadãos contra abusos de agentes dos três Poderes da República.
— A prevenção do abuso de autoridade é compromisso do Estado Democrático de Direito e dever essencial do Poder Público. Trata-se de ilícito grave, repreendido nas esferas penal, civil e administrativa. Na esmagadora maioria dos casos, envolve relações entre pessoas simples e esferas inferiores ou intermediárias de poder — afirmou Renan, na abertura do evento.
Participaram da sessão o presidente do Tribunal Superior Eleitoral e ministro do Supremo Tribunal Federal Gilmar Mendes, o juiz federal Sérgio Moro, da 13ª Vara Federal de Curitiba, e o juiz federal Sílvio Rocha, da 10ª Vara Federal Criminal de São Paulo. O senador Roberto Requião (PMDB-PR), relator do PLS, também fez parte da Mesa.
— As soluções negociadas para as divergências são sempre possíveis, por mais distantes que possam parecer. Nas mais variadas vertentes da vida existe espaço para a convergência de opiniões e de interesses. E é justamente o diálogo, sempre preferível à hostilidade, que nos permite identificá-lo — disse Renan ao abrir a sessão, quando também lembrou o pensamento de Tancredo Neves: “Não são os homens que brigam, são as ideias”.
Nesta segunda sessão, o presidente do Senado voltou a destacar que “a atividade de fazer leis talvez seja uma das mais difíceis e complexas da vida jurídica”. Renan ainda enfatizou que não basta a legislação declarar quais são os direitos fundamentais e liberdades públicas do cidadão, é preciso garanti-los, tornar efetiva sua proteção.
Lava Jato
Diante da manifestação de algumas associações preocupadas com a eventual interferência que a legislação do abuso de autoridade poderia ter na independência da magistratura ou de investigações policiais, o presidente do Senado esclareceu que a proposta não representa “iniciativa para embaçar a Operação Lava Jato ou qualquer outra investigação legalmente constituída”.
— Considero a Operação Lava Jato sagrada. A Operação Lava Jato, ela definiu alguns avanços civilizatórios. Ela precisa sim ser estimulada para que com ela e com outras que possam ser conduzidas na mesma direção, ela possa colaborar com a diminuição da impunidade no Brasil que é uma grande chaga — ponderou Renan.
O presidente do Senado explicou que o projeto abrange os servidores públicos dos três Poderes que ultrapassarem os limites de suas atribuições para fazer o que a lei veda ou constranger alguém a fazer algo que a lei não manda em detrimento dos direitos fundamentais.
— Apenas serão punidas as autoridades que, livre e conscientemente fizerem mau uso dos seus poderes. O julgamento é feito pelo Poder Judiciário, que se orienta e age segundo a lei. Eu sigo acreditando no Judiciário e duvidar da aplicação dessa lei, em outras palavras, significa duvidar do próprio Poder Judiciário — disse Renan.
Blindagem
O presidente do Senado ainda lembrou que o Ministério Público tem a “blindagem” do procurador-geral da República, de cuja vontade depende a continuidade de investigação contra qualquer de seus integrantes. Por isso, reiterou que acha “ilusório supor que mero projeto de lei versando sobre abuso de autoridade, alinhado e compatível com as legislações de outros países democráticos, possa colocar em risco a atividade de juízes e de procuradores, dotados que são de prerrogativas que asseguram sua independência funcional”.
Renan reforçou que o texto do projeto de lei foi elaborado por uma comissão de juristas, em 2009, durante o II Pacto Republicano, com efetiva participação do Poder Judiciário e com o Poder Executivo ouvido por intermédio do Ministério da Justiça.
— Aliás, no estágio civilizatório atual, com técnicas e equipamentos avançados de investigação, bem como a qualificação profissional de policiais, promotores e juízes, lançar mão do abuso de autoridade para desvendar crimes só se justifica por pura maldade, preconceito ou grave psicopatia — acrescentou Renan.
Ao encerrar, o presidente do Senado salientou que a reapresentação do projeto de 2009 “foi às claras” e a discussão da nova lei acontece, mais uma vez, numa sessão temática, “a céu aberto com a honrosa participação de todos”.
— O Congresso Nacional está receptivo ao diálogo e permeável a críticas e sugestões para corrigir eventuais falhas na proposta legislativa em debate, claro. Só não pode o Congresso Nacional ser omisso neste momento histórico, nem de conivência com atentados contra as liberdades públicas, às quais tem o dever de proteger — encerrou Renan.
Mendes acha que o momento é apropriado para mudar lei do abuso de autoridade
O ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Gilmar Mendes fez um apelo nesta quinta-feira (1º) para que a atualização da Lei de Abuso de Autoridade (Lei 4.898/1965) seja discutida “com abertura mental”. Ao contrário do juiz da 13ª Vara Federal do Paraná, Sérgio Moro, que não considera a hora oportuna para mudar aquele texto, Mendes defendeu a discussão do projeto neste momento. Ao participar de sessão temática sobre o tema no Plenário do Senado, ele observou que as operações contra corrupção continuarão, com ou sem atualização da lei, já que os instrumentos em vigor são suficientes,.
— Teríamos que, daqui a pouco, então, buscar um ano sabático das operações para que o Congresso pudesse deliberar sobre um tema como este? Não faz sentido algum – argumentou Mendes.
O ministro do Supremo lembrou que, quando se tornou presidente do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), elegeu como prioridade enfrentar a questão do sistema prisional. Com os mutirões carcerários, acrescentou, foram libertadas 22 mil pessoas que estavam presas indevidamente. Em um desses mutirões, foram encontradas pessoas presas, provisoriamente, há 11 e até 14 anos. Para o ministro, processos como esses demonstram “evidente abuso de autoridade”. Foi nesse contexto, recordou Mendes, que se começou a discutir a necessidade de mudança na Lei de Abuso de Autoridade, “estabelecendo aquilo que antes não acontecia: a obrigatoriedade”.
— Quando comecei esse trabalho no Supremo, encontrei muitos juízes, talvez a maioria dos juízes da execução penal, que nunca tinham visitado um presídio – assinalou.
O ministro se disse “bastante tranquilo” com a iniciativa, que se deu no contexto do Pacto Republicano, em 2009, com o objetivo de fortalecer a defesa dos direitos fundamentais. Ele concordou com algumas sugestões para aprimoramento do projeto, “porque o propósito, obviamente, não é criminalizar a atividade do juiz, do promotor ou do integrante de CPI no âmbito do Congresso Nacional”.
Mendes considerou “bem-vinda” a sugestão de prever no projeto eventuais abusos de integrantes dos tribunais de contas, “que hoje exercem um poder significativo e, muitas vezes, capaz de perpetrar abuso de autoridade”. O ministro conclamou os agentes públicos a não ceder à tentação de proceder ao combate do crime mediante qualquer prática abusiva.
– Há um texto histórico de [Norberto] Bobbio. Uma reflexão sobre a situação da Itália no combate ao terrorismo. Ele recomendava que não fossem aprovadas leis excepcionais para o combate ao terrorismo, porque esse era o valor do Estado de direito, isto não poderia ser feito.
Atuação de juiz na interpretação da lei não deve representar crime, diz Sérgio Moro
O juiz federal Sérgio Moro, em sessão temática sobre o Projeto de Lei do Senado (PLS) 280/2016, que regulamenta casos de abuso de autoridade. Ele disse ainda que este talvez não seja o melhor momento para o Senado deliberar sobre uma nova legislação a respeito do tema, num contexto em que o Brasil vive operações importantes como a Lava Jato.
— Faço essa sugestão com extrema humildade. Não me cabe aqui censurar o Senado, mas acredito que talvez não seja o melhor momento, e o Senado pode passar uma mensagem errada à sociedade. Talvez uma nova lei poderia ser interpretada com o efeito prático de tolher investigações — afirmou o juiz.
Para Sérgio Moro, a sociedade brasileira está ansiosa pelo que vem sendo revelado pelo trabalho da Polícia Federal, Ministério Público e Judiciário e espera pelo enfrentamento efetivo da criminalidade.
Hermenêutica
Ao entrar no mérito do projeto, Moro afirmou que qualquer lei que reduza desvios de conduta é bem-vinda, mas há que se ter cuidado para que, a pretexto de se coibir o abuso, a norma não tenha um efeito prático de cercear o trabalho dos agentes da lei.
— Não importa a intenção do legislador. Diz um ditado que a lei tem suas próprias pernas. Ainda que tenha boas intenções, como será interpretada e aplicada é uma questão em aberto — advertiu.
O juiz apresentou ao Senado uma sugestão para limitar a possibilidade do chamado crime de hermenêutica, de modo a evitar que seja configurada crime a divergência na interpretação da Lei Penal e da Lei Processual Penal e na avaliação de fatos e provas.
— Com isso parte do receio de uma aplicação equivocada desse projeto pode ser evitada.
Emendas da meia-noite
O magistrado comentou também a aprovação pela Câmara dos Deputados de uma emenda incluindo o abuso de autoridade no pacote anticorrupção contido no PL 4.850/2016 (numeração na Câmara). A votação foi feita na madrugada de quarta-feira (30).
— Essas emendas da meia-noite, que não permitem uma avaliação por parte da sociedade não são apropriadas em se tratando de tema são sensível — afirmou Moro, que elogiou o Senado por estar abordando o tema com “abertura e transparência”.
As sessões temáticas foram instituídas no Senado para permitir debates mais aprofundados de grandes temas nacionais, sem as limitações tempo impostas pelo Regimento Interno. Outras questões como mudanças na Petrobras, terceirização e limitação dos gastos públicos também já foram alvo de discussões.
*Com informações da Agência Senado.