A vida de Valdomiro Santana é uma experimentação literária

Valdomiro Santana

Juarez e Valdomiro SantanaConvidaram Valdomiro a entrar e, feliz, ele anteviu o (seu) paraíso.

O editor e escritor Valdomiro Santana tem múltiplas qualidades intelectuais. Quando este que vos escreve estava para lançar o livro sobre o Centro Histórico de Salvador, ele, Valdomiro, se debruçou sobre o texto e, ao revisá-lo, sugeriu correções e alterações que deram outra qualidade ao livro. Foi praticamente um coautor.

E daí surgiu entre nós uma amizade baseada em interesses intelectuais e empatia mútua, alimentada por longas conversações. Valdomiro Santana é um mestre e, aproveitando da sua vasta erudição, aprendo.

Valdomiro é amante dos livros e da literatura. Delicia-se com coisas que para outros não teriam maior significado. Sinto um que de paixão em seus olhos e suas mãos quando, concentrado, lê um livro — em feitio de oração. E isto ele faz todo tempo a toda hora. Quando às seis da manhã, viajamos num “busão” para Feira de Santana, em vez de tirar um cochilo tonificador para a faina diária que dali a pouco se iniciará, encontro ele, infatigável, lendo lendo e lendo.

Como o cara não para de ler, me sinto como que um intruso quando o procuro para um breve diálogo, e Valdomiro atenciosamente é obrigado a desviar os olhos da palavra impressa, prestando-me atenção. Fico a imaginá-lo lendo embaixo do chuveiro, hábito talvez abandonado porque colocava em risco as páginas do livro.

Baiano de Campo Formoso, Valdomiro tem como sua segunda pátria a Cidade do Rio de Janeiro, onde residiu. Numa visita recente a outrora maravilhosa urbe, bateu à porta do autor de “Ai de ti, Copacabana”, em Ipanema.

Quem reside no confortável apartamento do cronista de Cachoeiro de Itapemirim, já falecido, é seu filho Roberto, esposa e o enteado. Convidaram Valdomiro a entrar e, feliz, ele anteviu o (seu) paraíso.

O interior da casa, com duas salas modestas e três suítes, uma delas de empregada, guarda pouco do velho Rubem Braga, que doou muita coisa para os amigos, em vida — livros, obras de arte etc.

Todavia, o lugar de visitação mais importante é a cobertura. Um jardim suspenso, projetado por Burle Marx, circunda o apartamento de dois pavimentos, no 13º andar de um edifício assinado pelo arquiteto Sérgio Bernardes, na rua Barão da Torre, “entre uma favela superpovoada e uma praça movimentadíssima”, como escreveu o cronista.

A vista da praça e da praia foram perdidas por causa dos altos prédios que surgiram a partir dos anos 1970, mas ainda é possível avistar o mar, as ilhas, a estátua do Cristo Redentor, a lagoa Rodrigo de Freitas, o morro Dois Irmãos.

Também continua lá o banco do jardim, em que o escritor sentava-se de manhã para ler jornal e fazer palavras cruzadas, ao lado da mangueira que compõe o imenso pomar com pitangueira, goiabeira, jabuticabeira, coqueiro e até um raro pé de araçá.

A “cobertura agrária”, como dizia Millôr Fernandes, do “único lavrador de Ipanema”, na definição do amigo Paulo Mendes Campos, se tornou uma espécie de academia de letras informal: amigos como Jorge Amado, Vinicius de Moraes, Clarice Lispector, Fernando Sabino e tantos outros eram convivas frequentes.

O local dos encontros, regados a uísque, era a larga varanda, que conserva mesinhas de tampo de mármore, típicas de boteco, e cadeiras de madeira, além das redes. Nesse ambiente, o dono da casa ofereceu uma bebida ao extasiado Valdomiro, que se transportou mentalmente para aquela mítica época de ouro.

… Assim é o tipo de turismo praticado por Valdomiro, nessas coisas ele tira uma grande satisfação existencial. Essa foi a “Catedral literária” do seu passeio pelas plagas cariocas.

Eis que Valdomiro Santana lança o seu quarto livro, fruto da dissertação de mestrado em Literatura e Diversidade Cultural na UEFS (Universidade Estadual de Feira de Santana). Intitula-se “Experimentação-vida: a poesia de Antônio Brasileiro”.

Sobre a obra depõe o autor:

“O que procuro mostrar no estudo, este livro, é que essa poesia (como de resto qualquer obra de arte) não precisa ser compreendida, nem interpretada, mas experimentada como criação de agregados sensíveis. Leitura, pois, em que o gosto não conta. Gostar de uma obra de arte não é senão sobrepor a ela essa ‘categoria estética’, a do gosto, e silenciá-la.

“Nessa medida, a experimentação que proponho da poesia de Brasileiro só se dará se o leitor abrir mão de seu poder de dizer Eu, se se sentir fora, arrancado, de sua subjetividade, privado de certezas, despossuído de seus hábitos intelectuais.

“As pessoas, em geral, pensam que sabem ler um poema, ou estão preparadas para lê-lo. Essa leitura, porém, se faz carregada desses hábitos, como o de rotular, adjetivar a poesia, dizer que ela é “isso” ou “aquilo”, e o do decreto do gosto, de tal modo que já têm fabricados dois carimbos, o do “gostei” e  o do ‘não gostei’. Não se dão conta de que a arte da poesia, como qualquer outra, é essencialmente impessoal.

“Antes mesmo de as pessoas abrirem um livro de poemas e começarem a lê-los, o que acontece? Os poemas escapam, nada podem comunicar, já previamente entulhados, silenciados, categorizados por esses hábitos.

“A linguagem da poesia é completamente distinta da linguagem corrente, da linguagem filosófica, ou científica ou técnica. A palavra ‘verso’, por exemplo, quer dizer, em sua origem, ‘volta’. A poesia difere da linha contínua da prosa por ser uma linha interrompida que gira indo e vindo. Uma torção. É nessa volta, inquietante porque diferente a cada vez, que se dá a emoção da leitura, e o leitor pode pensar poeticamente sem ser poeta.

“Não por outro motivo, as palavras de um poema são e não são mais as  de todo dia, as que o cotidiano banalizou, como, entre milhares delas, ‘azul’, ‘noite’, ‘árvore’, ‘cinzas’, ‘mar’, ‘ontem’, ‘vento’…

Todas essas considerações têm a ver com o estudo que faço da poesia de Brasileiro. É ele, e sem nenhum favor, um dos nomes  mais expressivos hoje da poesia em língua portuguesa. Além de poeta, é pintor. Sua criação plástica também entra no âmbito do estudo, particularmente na ilustração das capas de três de seus livros de poemas.

O que: livro “Experimentação-vida: a poesia de Antonio Brasileiro”, de Valdomiro Santana, Feira de Santana, UEFS Editora, 2013.

 

Banner da Prefeitura de Santo Estêvão: Campanha do São João 2024.
Banner da Campanha ‘Bahia Contra a Dengue’ com o tema ‘Dengue mata, proteja sua família’.
Sobre Juarez Duarte Bomfim 726 artigos
Baiano de Salvador, Juarez Duarte Bomfim é sociólogo e mestre em Administração pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), doutor em Geografia Humana pela Universidade de Salamanca, Espanha; e professor da Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS). Tem trabalhos publicados no campo da Sociologia, Ciência Política, Teoria das Organizações e Geografia Humana. Diversas outras publicações também sobre religiosidade e espiritualidade. Suas aventuras poético-literárias são divulgadas no Blog abrigado no Jornal Grande Bahia. E-mail para contato: juarezbomfim@uol.com.br.

Seja o primeiro a comentar

Deixe um comentário