Governos e opinião pública mundial fecham os olhos aos Navios Negreiros do Século XXI

Juarez Duarte Bomfim.
Juarez Duarte Bomfim.

São 20 mil mortos no mar, nos últimos 20 anos. Migrantes africanos fugindo da perseguição política e crises econômicas que ameaçam à sua sobrevivência e de suas famílias. A indiferença toma conta de todos, especialmente dos países membros da União Europeia. Uma voz clama no deserto: Papa Francisco.

Homilia do Papa Francisco na Missa em Lampedusa. 08/07/2013

Imigrantes mortos no mar, daqueles barcos que em vez de ser um caminho de esperança foram caminho de morte. Assim o título dos jornais. Quando há algumas semanas recebi esta notícia, que infelizmente tantas vezes se repetiu, o pensamento voltou continuamente como um espinho no coração que traz sofrimento. E então senti que devia vir aqui hoje para rezar, cumprir um gesto de proximidade, mas também para despertar as nossas consciências para que isso que aconteceu não se repita. Não se repita, por favor. Antes, porém, gostaria de dizer uma palavra de sincera gratidão e de encorajamento a vós, habitantes de Lampedusa e de Linosa, às associações, aos voluntários e às forças de segurança, que mostraram e mostram a atenção às pessoas em sua viagem rumo a algo melhor. Vocês são uma pequena realidade, mas oferecem um exemplo de solidariedade! Obrigado! Obrigado também ao arcebispo, Dom Francesco Montenegro, pela sua ajuda, o seu trabalho e a sua proximidade pastoral. Saúdo cordialmente a prefeita, senhora Giusi Nicolini, muito obrigado por aquilo que a senhora fez e que faz. Um pensamento dirijo aos queridos imigrantes muçulmanos que, hoje, à noite, estão iniciando o jejum do Ramadã, com o desejo de abundantes frutos espirituais. A Igreja vos é próxima na busca de uma vida mais digna para vós e as vossas famílias. A vós: o’scià!

Esta manhã, à luz da Palavra de Deus que escutamos, gostaria de propor algumas palavras que, sobretudo, provoquem a consciência de todos, levem a refletir e a mudar concretamente certas atitudes.

“Adão, onde estás?”: é a primeira pergunta que Deus dirige ao homem depois do pecado. “Onde estás Adão?”. E Adão é um homem desorientado que perdeu o seu lugar na criação porque acredita tornar-se poderoso, poder dominar tudo, ser Deus. E a harmonia se rompe, o homem erra e isto se repete também na relação com o outro que não é mais o irmão a amar, mas simplesmente o outro que perturba a minha vida, o meu bem-estar. E Deus coloca a segunda pergunta: “Caim, onde está o teu irmão?”. O sonho de ser poderoso, de ser grande como Deus, até mesmo de ser Deus, leva a uma sequência de erros que é sequência de morte, leva a derramar o sangue do irmão!

Estas duas perguntas de Deus ressoam também hoje, com toda a sua força! Tantos de nós, incluo a mim também, estamos desorientados, não estamos mais atentos ao mundo em que vivemos, não cuidamos, não zelamos por aquilo que Deus criou para todos e não somos mais capazes sequer de cuidar uns dos outros. E quando esta desorientação assume as dimensões humanas do mundo, se chega a tragédias como a que vimos.

“Onde está o teu irmão?”, a voz do seu sangue clama a mim, diz Deus. Esta não é uma pergunta dirigida aos outros, é uma pergunta dirigida a mim, a você, a cada um de nós. Aqueles nossos irmãos e irmãs buscavam sair das situações difíceis para encontrar um pouco de serenidade e de paz; buscavam um lugar melhor para si e para as suas famílias, mas encontraram a morte. Quantas vezes aqueles que buscam isso não encontram compreensão, não encontram acolhida, não encontram solidariedade! E suas vozes se levantam a Deus! E uma vez mais agradeço aos habitantes de Lampedusa pela sua solidariedade. Ouvi, recentemente, um desses irmãos. Antes de chegar aqui passaram pelas mãos dos traficantes, aqueles que exploram a pobreza dos outros, estas pessoas para as quais a pobreza dos outros é uma fonte de renda. Quanto sofreram! E alguns não conseguiram chegar.

“Onde está o teu irmão?”. Quem é o responsável por este sangue? Na literatura espanhola há uma comédia de Lope de Veja que narra como os habitantes da cidade de Fuente Ovejuna mataram o governador porque é um tirano, e o fizeram de modo que não se soubesse quem havia cumprido a execução. E quando o juiz do rei pergunta: “Quem matou o governador?”, todos respondem: “Fuente Ovejuna, Senhor”. Todos e ninguém! Também hoje esta pergunta emerge com força: quem é o responsável pelo sangue desses nossos irmãos e irmãs? Ninguém! Todos nós respondemos assim: não sou eu, não tenho nada a ver com isso, serão os outros, certamente não eu. Mas Deus pergunta a cada um de nós: “Onde está o sangue do teu irmão que clama a mim?”. Hoje ninguém no mundo se sente responsável por isto; perdemos o sentido da responsabilidade fraterna; caímos na atitude hipócrita do sacerdote e do servidor do altar, do qual falava Jesus na parábola do Bom Samaritano: olhamos para o irmão meio morto na beira da estrada, talvez pensamos “pobrezinho” e continuamos pelo nosso caminho, não é tarefa nossa; e com isto nos tranquilizamos, nos sentimos no lugar. A cultura do bem-estar, que nos leva a pensar em nós mesmos, nos torna insensíveis ao grito dos outros, nos faz viver em bolhas de sabão, que são belas, mas são nada, são uma ilusão de futilidade, do provisório, que leva à indiferença para com os outros, leva até mesmo à globalização da indiferença. Neste mundo da globalização caímos na globalização da indiferença. Nós nos habituamos ao sofrimento do outro, não nos diz respeito, não nos interessa, não é tarefa nossa.

Retorna a figura do anônimo de Manzoni. A globalização da indiferença nos torna todos “anônimos”, responsáveis sem nome e sem face.

“Adão, onde estás?”, “Onde está o teu irmão?”, são as duas perguntas que Deus coloca no início da história da humanidade e que dirige também a todos os homens do nosso tempo, também a nós. Mas eu gostaria que colocássemos uma terceira pergunta: “Quem de nós chorou por este fato e pelos fatos como este?”. Quem chorou pela morte destes irmãos e irmãs? Quem chorou por tantas pessoas que estavam no barco? Pelas jovens mães que levavam as suas crianças? Por estes homens que desejavam alguma coisa para sustentar as próprias famílias? Estamos em uma sociedade que esqueceu a experiência do chorar, do “padecer com”: a globalização da indiferença nos tirou a capacidade de chorar! No Evangelho escutamos o grito, o choro, o grande lamento: “Raquel chora por seus filhos… porque não existem mais”. Herodes semeou morte para defender o próprio bem-estar, a própria bolha de sabão. E isto continua a repetir-se… Peçamos ao Senhor que anule aquilo que de Herodes permaneceu também no nosso coração; peçamos ao Senhor a graça de chorar sobre a nossa indiferença, de chorar sobre a crueldade que há no mundo, em nós, também naqueles que no anonimato tomam decisões sócio-econômicas que abrem caminho aos dramas como este. “Quem chorou?”. Quem chorou hoje no mundo?

Senhor, nesta Liturgia, que é uma Liturgia de penitência, pedimos perdão pela indiferença para com tantos irmãos e irmãs, pedimos-te, Pai, perdão por quem se acomodou e se fechou no próprio bem-estar que leva à anestesia do coração, pedimos-te perdão por aqueles que com as suas decisões em nível mundial criaram situações que conduzem a estes dramas. Perdão Senhor!

Senhor, que ouçamos também hoje as suas perguntas: “Adão onde estás?”, “Onde está o sangue do teu irmão?”.

Banner da Prefeitura de Santo Estêvão: Campanha do São João 2024.
Banner da Campanha ‘Bahia Contra a Dengue’ com o tema ‘Dengue mata, proteja sua família’.
Sobre Juarez Duarte Bomfim 726 artigos
Baiano de Salvador, Juarez Duarte Bomfim é sociólogo e mestre em Administração pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), doutor em Geografia Humana pela Universidade de Salamanca, Espanha; e professor da Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS). Tem trabalhos publicados no campo da Sociologia, Ciência Política, Teoria das Organizações e Geografia Humana. Diversas outras publicações também sobre religiosidade e espiritualidade. Suas aventuras poético-literárias são divulgadas no Blog abrigado no Jornal Grande Bahia. E-mail para contato: juarezbomfim@uol.com.br.

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