A hegemonia do bem? | Por Boaventura de Sousa Santos

Boaventura de Sousa Santos, sociólogo e professor catedrático da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra (Portugal).
Boaventura de Sousa Santos, sociólogo e professor catedrático da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra (Portugal).
Boaventura de Sousa Santos, sociólogo e professor catedrático da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra (Portugal).
Boaventura de Sousa Santos, sociólogo e professor catedrático da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra (Portugal).

A eleição do Presidente Obama é um acontecimento de global e transcendente importância para todos os que acreditam na possibilidade de um mundo melhor. Nos últimos quinze anos, dois outros acontecimentos adquiriram esta mágica qualidade: a eleição de Nelson Mandela como Presidente a África do Sul em 1994 e os quinze milhões de cidadãos que por todo o mundo saíram à rua em 15 de fevereiro de 2003 para protestar contra a invasão do Iraque. Muito distintos entre si, estes três acontecimentos têm em comum uma concepção pós-nacionalista do mundo. O mundo é a cidade natal da esperança e o que acontece num país diz respeito a todos os demais. Partilham também o serem testemunho da inesgotável criatividade da espécie humana, para o melhor e para o pior.

Os três acontecimentos foram considerados impossíveis quase até ao momento de nos baterem à porta. Partilham ainda a capacidade mágica dos seres humanos de celebrarem incondicionalmente a magia dos momentos de comunhão liberta dos constrangimentos da realidade, como se esta tivesse saído para almoçar e ainda não tivesse regressado.

Mas a relação entre a vitória de Obama e os dois outros acontecimentos é ainda mais profunda. Obama e Mandela são dois homens com fortes raízes na África e são orgulhosos das sua raízes. Mandela é, além de tudo, um líder de linhagem nobre Xhosa e Obama é membro da etnia Lou do Quenia (uma etnia discriminada antes e depois da independência), como refere com naturalidade no seu livro bestseller. As suas identidades foram tecidas pela memória do sofrimento injusto, da segregação, do colonialismo.

Mandela simboliza o caso extremo de uma maioria submetida a um cruel sistema da apartheid durante décadas. Obama, apesar de não ser ele mesmo descendente de escravos, simboliza o resgate do inominavél sofrimento que foi infligido aos afro-americanos, um sofrimento tão naturalizado pelos opressores que continuou até aos nossos dias sob a forma do racismo. Para além do voto dos brancos, Obama conquistou o voto esmagador dos cidadãos afro-descendentes e latino-descendentes e conquistou ainda o voto de uma minoria quase esquecida, os jovens.

A sua vitória é a vitória das minorias quando estas descobrem que, unidas, são a maioria. Nos últimos quinze anos, a África mostra-se ao mundo nos ombros destes dois gigantes e assim responde Basta! aos insultos do Banco Mundial e do FMI para quem a África é o continente infeliz onde o capitalismo global decidiu depositar multidões de seres humanos considerados descartáveis. Por uma via muito própria—selada no seu passado colonial – a África chega ao protagonismo mundial que nas duas últimas décadas conquistaram a Ásia e a América Latina (que também é Afro-latina e Indo-latina).

A relação entre a vitória de Obama e os milhões em protesto contra a guerra ilegal e injusta contra o Iraque não é menos relevante. As multidões em protesto não conseguiram impedir a guerra, tal como aconteceu com o senador Obama, um dos poucos que votou contra a guerra. Mas agora, como presidente dos EUA, tem nas suas mãos a possibilidade de pôr fim a essa guerra e, aliás, foi isso mesmo que prometeu aos seus eleitores. Os que votaram neles querem aliás que ele ponha fim à guerra gêmea que avassala o Afeganistão.

Neste domínio o seu estado de graça será curto, tanto no país como no mundo. O Afeganistão tem uma memória e uma história exaltantes de lutas vitoriosas contra invasores estrangeiros bem mais poderosos militarmente. Não há armas que verguem este país. Tudo indica que Obama privilegiará a diplomacia e que entenderá que a Al-Queda não pode ser destruída militarmente. Pode, isso sim, ser isolada pela paz e pela cooperação não colonialista. A vitória de Obama significa que, afinal, os protestantes não protestaram em vão.

A menção conjunta de três acontecimentos que visam devolver a humanidade ao melhor de si mesma pode ser surpreendente já que a vitória de Obama parece ter um significado global incomparavelmente superior aos dos outros dois. Este desequilíbrio é o resultado do privilégio hegemônico dos EUA no mundo de hoje, um privilégio em declínio, sobretudo no domínio econômico, mas por enquanto muito forte. Para o bem e para o mal. O 11 de Setembro “transformou o mundo” quando outras populações do mundo sofrem anualmente ataques tão injustos, tão criminosos e muitas vezes mais devastadores do que o ataque às torres gêmeas, sem que isso mereça mais de uma pequena referência noticiosa. Da mesma forma, um pequeno país, o Paraguai, elegeu, em 2008, um bispo, teólogo da libertação, para libertar o país da mais odiosa oligarquia sem que tal merecesse referência detalhada na imprensa internacional.

Obama tem esse privilégio de oferecer ao mundo inteiro um momento glorioso de hegemonia do bem. Só por isso ficará na história. Esse momento não durará muito. A realidade não costuma demorar muito quando sai para almoçar. Quando terminar, tudo vai depender do modo como o impulso do bem enfrentará o do mal. E tudo vai começar nos EUA, um país contraditório e sofrido. Contraditório, porque é o mesmo povo que há oito anos “elegeu” W.Bush, o pior presidente da história dos EUA. Sofrido, porque a estupidez, a avareza e a corrupção que dominaram a Casa Branca deixaram o país à beira da falência financeira e moral. Esta última foi rapidamente resgatada por Obama. A primeira será muito mais difícil de resgatar.

Madison, Wisconsin 5 de Novembro 2008.

*Boaventura de Sousa Santos, sociólogo e professor catedrático da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra (Portugal).

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